Consultado para o efeito num qualquer dia, no dia seguinte a consulente podia voltar ao solar e estar certa que sairia de lá com o «ponto» feito.
Uma das revistas que circulava na vila nos fins do século XIX, mais propriamente na década de 80, virada para essa
arte, era «La Mode Illustree, Journal de La Famille», vendida em fascículos a 50 cêntimos cada.
À minha biblioteca aportaram alguns exemplares desse «Journal de Famille» incluídos no espólio que pertenceu à casa «Girão» que me foi cedido pelos seus herdeiros antes de venderem e entregarem o edifício ao comprador, despejado de haveres e tarecos. Digamos que, por diligência minha, consegui salvar do «Aterro do Planalto Beirão», onde vai parar todo o lixo de Castro Daire, parte da história do concelho, dado que não há história sem pessoas, sem artes, sem filhos, nem cadilhos.
De todas as fontes orais consultadas foi a D. Alice Morgado Guerra Cerdeira, com 85 anos de idade, neste ano de 2011, que me disse possuir algumas relíquias saídas das delicadas mãos desse mestre, relíquias herdadas da sua avô, D. Maria Diogo Morgado, nascida em 1 de Maio de 1869 e falecida em 4 de Março de 1955, peças a saber: um «napperon» e uma colcha de cama de casal.
Fez o favor de me deixar fotografar essas peças, aquelas que aqui reproduzo como documento da «arte» praticada por um homem de Castro Daire, num tempo em que tal tarefa estava socialmente adstrita a damas e donzelas. Isto numa comunidade paroquial vestida, forrada e revestida de preconceitos, críticas malsãs e ditos que a memória oral registou para a posteridade e o investigador não pode deixar de referir sob pena de dar mostras do seu interesse pelas coisas e desinteresse pelas pessoas e suas formas de pensar e agir: uma versão diz que um homem que assim procedia só podia ser efeminado, pouco digno da nobre linhagem de Afonso Henriques que, para além da esposa, Mafalda, teve várias amantes; outra versão contrária diz que essa era a forma fidalga do senhor Mendonça atrair à corte, isto é, ao seu solar, as damas e donzelas da vila e num qualquer recanto esconso saborearem juntos as delícias da vida, fazendo jus aos Machados, aos Pintos, aos Correias e as Barbosas, representados no brasão de armas colocado sobre o portão principal do solar.
Seja como for, face a este irreverente e delicado labor público de um homem com brasão na testada do seu solar, a memória transportou-me a um texto de Ramalho Ortigão inserto na selecta de textos literários obrigatórios nos primeiros anos de liceu. Dizia respeito ao tricô feito pelas mãos da sua mãe e tinha por titulo «Mãos que prestam e mãos que não prestam», pelo que, a propósito, bem pode dizer-se que tal atributo artístico não é específico desta ou daquela classe social, deste o daquele sexo.
NOTA. transportado do antigo site, onde permanece alojado