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domingo, 02 outubro 2016 14:40

CASTRO DAIRE - GENTE DA TERRA - I

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POESIA E HISTÓRIA

Há dias, passando eu junto do coreto, alguém, lá do fundo, chamou por mim. Era o senhor General José Agostinho Melo Ferreira Pinto, irmão do  Dr. Jorge Melo Ferreira Pinto.  A finalidade do chamamento era felicitar-me pela autoria do livro «O HOMEM DA NAVE, DEVOTO DE DIANA», que o seu irmão, médico,  lhe oferecera pelos seus anos». 

2-Dr.Jorge - Cópia

Devolvi-lhe imediatamente a gentileza, felicitando-o pelo gosto da leitura das nossas coisas serranas e históricas. Não sem alguma estranheza minha sobre a forma como o meu livro lhe chegou às mãos, pois não tendo eu feito qualquer «cerimónia de lançamento» do livro (cerimónias que estão muito em voga, mas a que sou um tanto quanto avesso), por descuido e não por desconsideração, não lhe dei conhecimento pessoal do nascimento desse meu último filho «um hino à obra literária de Aquilino Ribeiro e às gentes das serras do Montemuro e da Nave», editado pela Publiarte, de LINO MENEZES.

Depois disso, o Dr. Jorge Ferreira Pinto, hoje como ontem, sempre ávido de dar a conhecer "CASTRO DAIRE", e o que por cá se vai fazendo, tal como fazia nas crónicas que periodicamente publicava na "Voz de Lamego" e na "Gazeta da Beira" (a aquisição e oferta desse meu livro ao seu irmão General é bem o exemplo desse espírito) fez-me chegar um texto ANÓNIMO datilografado que tem por título exatamente: "CASTRO DAIRE".

Vindo donde vinha, confiante estava ele que eu não só identificaria a autor, mas também teceria as minhas considerações sobre o anónimo texto. Não se enganou. No "CAFÉ CENTRAL", ali mesmo nas "QUATRO ESQUINAS", onde tenho feito escritório da parte da manhã, li-o com a sede do caminhante que chega junto de uma fonte depois de muitos quilómetros andados e suados. Após isso, dirigi-me ao consultório do Dr. Jorge, junto do Coreto (onde felizmente raramente tenho ponho os pés, entendem?) para agradecer-lhe a oferta e lhe dar a minha primeira novidade: já sabia quem era o autor. Como assim? Perguntou.  Expliquei-lhe. E é o que vou fazer a todos os meus leitores.

Mendonça- Redz1 - O texto consta de 150 quadras, dispostas em duas colunas de folhas A4. Não é uma peça literária, do ponto de vista da forma e da métrica, mas, do princípio ao fim, mostra que o autor conhecia a literatura clássica e não em "som alto e sublimado"  mas em  QUADRAS populares, "verso humilde celebrado", ciranda pelo concelho inteiro, por todo o lado, e regista para a posteridade informação histórica, geográfica, costumes e até, aqui e além, traços de caracter de alguma gente, de alguns dos protagonistas sobre os quais pôs a sua lupa de observador. E de toda obra, escrita assim, não em "estilo grandíloquo e eloquente", mas na sua musa inspirado, exala o amor devotado ao concelho inteiro,  às suas terras e gentes. 

Respeitando, rigorosamente, a grafia e a pontuação, vejam como começa:

 

Por sugestão, de colega amiga,

Do nosso velho tempo escolar,

Vou vêr, se posso retratar,

A "nossa" querida vila antiga!

 

Quem não conhece CASTRO DAIRE?

Da Beira Alta, concelho famoso,

Rincão, belo, rico e formoso

Com muito bôa gente e donaire.

O poeta anónimo começa por descrever a monumentalidade da Igreja Matriz, de todas as capelas existentes no burgo e logo a seguir deixa-nos um itinerário por todas as aldeias co concelho. E, adianto desde já, ele não era nenhum peco, naquilo que dizia e sentia. Solitário nessa sua romagem a Compostela, eis uma pérola que nos remete imediatamente para a literatura medieval e/ou para o "D. Quixote de la Mancha":

Nas minhas caminhadas vou ao ALMARGEM

Dobro à esquerda, chego a ADENODEIRO,

Povoação que eu encontrei primeiro

Tendo sempre a minha sombra como "pagem".

É isso. Quem não vê aqui um D. Quixote de Castro Daire, a cirandar por terras concelhias, não acompanhado do Sancho Pança, mas solitário que tem por companhia, por "pagem" , apenas e só a sua própria "sombra"?

Pois. Este texto, feito em "quadras",  é uma espécie de fotografia urbana, rural, de psicologia individual e social,  capaz de fazer inveja a tantas outras fotografias que hoje por aí se divulgam na Internet e em livros. E o autor, a passear-se pelo concelho, tendo, nesse seu longo itinerário, solitário, apenas a sua sombra por companhia, por  "pagem", essa fotografia, essa imagem estática, num repente,  virou, na minha mente, filme em movimento e os sucessivos fotogramas (leia-se "quadras") projetaram-se  para aquém do seu tempo, com símile nos meus próprios tempos. O passado mantém-se vivo no presente. 

Prestes a terminar a sua romagem pelo concelho, falando de terras e gentes, vivas e mortas, não esquece a visita ao cemitério, onde vai rezar pelas almas daqueles que sempre admirou. Assim:

Indago de todos: haverá na BEIRA,

Concelho e Comarca que seja igual?

Haverá mesmo em todo o Portugal

Outro ou outra que lhe passe diante?

E dirigindo-se à colega e amiga dos tempos de escola, a sua inspiradora de infância, remata:

E para concluir o que me pedes,

O faço e ainda farei com emoção.

Vou em espírito ou irei em oração

Pedir no nosso cemitério pelos Guedes.

 

E com a mesma obrigação pungente,

Indo lá não deixarei de rezar

Por aqueles que sempre fiz admirar:

O velho Zé e a Dona Teresa Clemente.

 

Tu sabes bem que pedirei a Deus,

Por todos os que lá estão sepultados.

Mas, manda o sangue que os idolatrados

Primeiros pedidos sejam para os meus.

E aqui chegado, o poeta e eu, não estando o texto assinado nem o autor identificado, cabe-me a mim dizer quem é ele como é que eu cheguei à sua identificação. E nisto entram os trabalhos de investigação que, tal como ele "solitário entre gentes" quntas vezes tendo a "minha sombra por pagem", tenho levado a cabo pelo concelho, permitindo-me isso cruzar informações e, dessa maneira, esclarecer o não esclarecido ou deixado entrelinhas. Vamos a isso, que se faz tarde. 

 Saído da vila e iniciado o seu itinerário pelas aldeias do concelho, escreve:

Em primeiro, a bela FOLGOSA:

Feudo dos meus saudosos ancestrais,

Repleta de atrativos naturais,

Ao fundo o rio Paiva: vista airosa.

 

Detentora de belo, singular Jardim,

Que julgo em Portugal, sem similar,

Esse parque de camélias, espectacular,

Doei-o: pertencia só a mim!!!

Pronto. Eu não precisava de mais. Tendo levado alguns trabalhos de investigação sobre Folgosa, nomeadamente sobre túmulo do Abade Bizarro, assassinado em 1840 e, bem assim, sobre a condenação à forca de um dos seus assassinos, de Ferejinhas, certidão de óbito e sentença que publiquei neste meu site, "trilhos serranos", cujas cópias forneci ao meu PICT1705 - REDZamigo Arlindo Rodrigues Marcelino, ex-funcionário de Finanças, protagonista principal do papel e das funções desempenhadas pela Associação Desportiva e Recreativa com sede naquela localidade, indaguei sobre a doação que àquela Associação foi feita pela Junta da Freguesia. E vai daí, pelas mãos desse mesmo meu amigo (vejam o que leva as pessoas colaborarem umas com as outras nestas coisas da história) chegou-me a cópia da escritura notarial de doação do espaço contíguo ao edifício da Associação, conhecido pelo JARDIM DAS CAMÉLIAS. 

É uma escritura notarial com data de 7 de Fevereiro de 1964, dia em que perante o notário, Licenciado Francisco Augusto Caldas, "compareceram como outorgantes, Primeiro: Dr. Pio Cerdeira de Oliveira Figueiredo (...) na qualidade de procurador de CARLOS EMÍLIO DE MENDONÇA OLIVA e mulher D. MARIA AGAR HORTA DEVOLDER DE MENDONÇA, ele comerciante, natural desta vila e ela doméstica, natural do Brasil, residentes na cidade de Niterói, capital do Estado do Rio de Janeiro (...) donos e possuidores de um pedaço de terreno ajardinado, no lugar da Várzea, limite do lugar de Folgosa,PICT1706 - REDUZ desta freguesia e concelho (...) que pela presente escritura faz doação à representada do segundo outorgante do mencionado prédio (...)".

A representada no cartório notarial era a Junta de Freguesia de Castro Daire, na pessoa do senhor "Inocêncio  dos Santos Cruz, residente nesta vila, presidente da junta".

Pronto. «Branco é, galinha o põe».  Se a doação referida na escritura notarial foi feita por CARLOS EMÍLIO DE MENDONÇA OLIVA e o poeta afirma, na primeira pessoa, ter sido ele o doador de "singular Jardim (...) esse parque de camélias espetacular", mais não é preciso para sabermos que, posteriormente a esse ato notarial, o seu autor, residente no Brasil, de férias em Castro Daire, ou trazido pelas saudades e recordações de infância, nos legou o documento sobre o qual discorro.

(Continua)

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.