Trilhos Serranos

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sexta, 25 novembro 2016 14:37

ESTRADA NACIONAL Nº 2 (SÉTIMO APONTAMENTO)

Escrito por 

A ECONOMIA, OS AFETOS, AS PESSOAS E OS POVOS

Tenho vindo a referir as minhas relações afetivas e utilitárias com esta rodovia que, ao longo de séculos, não só mudou de nome, mas também, aqui ou além, foi sujeita a acrescentos e pequenos desvios nos seus elos de ligação ao seu longo percurso CHAVES-FARO.

Artéria principal a rasgar o país de cabo a rabo, os topógrafos modernos, com toda a parafernália de equipamentos ligados à profissão, nunca se desviaram muito das linhas traçadas pelos romanos que, cosendo a Península Ibérica nas mais diversas direções, deram substância à expressão "todos os caminhos vão dar a Roma"  com a qual abri o  QUINTO APONTAMENTO.

 O de hoje reportar-se à minha primeira relação física e afetiva, quer a pé, quer escarrapachado sobre a albarda de um  burro, sentado entre um par de cangalhas de madeira feitas à medida de latas de vinte litros, muito usadas na minha juventude para transportes de líquidos.

Motor-2Decorriam os anos de 1954-1955. Tal foi a falta de chuva nesses dois anos que, em Cujó e arredores, secaram todos os rios e ribeiros que habitualmente faziam girar os moinhos hidráulicos onde os moradores moíam os cereais que produziam para com eles fazerem o seu pão. E com esses moinhos imobilizados, como a gente não podia viver sem pão, valeu a todos os poviléus em redor a MOAGEM que o meu pai, Salvador de Carvalho, de parceria com alguns membros da família Tibério Teixeira  instalaram na aldeia, com maquia a meias.  O meu pai disponibilizou as instalações e todo o maquinismo que incluía as mós, as engrenagens de rodízio e correias de transmissão. Os Tibérios disponibilizaram o motor de marca Lister usado na malhadeira de que eram proprietários (semelhante ao da foto, ao lado, que extraí  de um vídeo anónimo disponível no Youtube sobre uma malhada em Cujó). A malhadeira foi uma das primeiras peças industriais da modernidade, aquela que, a pouco e pouco, substituiu o velho magual de pau que privou os homens de, ao fim da malhada, fazerem "zurrar a burra" nas eiras, aquele despique entre equipas de malhadores a ver qual delas fazia o maior estrondo a bater na palha e, desse modo, mostrarem a sua virilidade às namoradas, se eram solteiros e às esposas, se eram casados.

Face a tal seca, os sacos de centeio e de milho amontoavam-se na moagem do meu pai e o fabriqueta, em tudo semelhante moinho ao hidráulico, não tinha descanso noite e dia. As mós eram cobertas com um chapéu de cinco com um olho aberto no topo por onde entrava o cereal e uma abertura lateral bordejada com pano que, à laia de funil, se metia na boca do saco de linho que recebia a farinha, por forma a não haver qualquer desperdício. 

MOTOR-3Não era farinha com a qualidade daquela que era moída nos moinhos tradicionais. As altas rotações a que giravam as mós (problema técnico que o meu pai nunca resolveu eficientemente, apesar das tentativas que fez no desdobramento das políeis de diferentes diâmetros) eram as responsáveis por essa má qualidade. Mal moída e com pó de areia incorporado, os clientes bem torciam o nariz, bem se queixavam ao moleiro,  mas entre isso e nada, à falta de outro recurso por perto, afluíam ali como formigas ao formigueiro.

O motor Lister dos Tibérios (mais tarde o meu pai, para ter autonomia, comprou um motor da mesma marca, somente diferente do anterior no corpo e na potência) munido de uma manivela para o pôr a trabalhar, pegava com gasolina, mas, iniciados os quatro tempos da combustãopistão a subir e pistão a descer, tanto engolia petróleo como tratol. Há falta de um, metessem-lhe no depósito o outro e ele, desde que tivesse a cabeça fresca com a água que era revezada no bidão de duzentos litros acoplado,  tinha coração para bater noite e dia, semanas inteiras, "pum.. pum.. pum..." Só descansava quando se partia alguma correia de transmissão e era preciso consertá-la, ou o tempo que levava a tirar o capacete às mós e picá-las, quando era necessário.

E foi num tempo assim e nessa situação que o pai me incumbiu de ir a Lamego comprar duas latas de tratol de 20 litros cada, metidas num par de cangalhas colocadas sobre a albarda de um burro emprestado para o efeito, semelhantemente ao burro que se vê na foto ao lado (copiada da Internet, data venia ao autor) por mim adaptada para ilustração deste apontamento. Longe estavam os tempos de crianças e adultos poderem viajar munidos de câmaras fotográficas e muito menos de telemóveis com câmara incorporada. Até que tal fosse possível passou uma eternidade.

Eu tinha apenas 16 anos de idade. E, aos setenta e sete que hoje conto, ainda ouço o meu pai dizer-me: «vais daqui até à Relva, dali a Vale Abrigoso, segues até ao Mezio e ali apanhas a estrada que vai para Lamego. É só segui-la. Chegado à cidade encontras um grande homem de pedra muito grande (estátua do soldado desconhecido) e aí viras à direita até ao fundo da Avenida. Lá, no lado esquerdo, numa casa, vês duas mulheres de pedra com um braço levantado e um candeeiro na mão. Ao lado delas existe uma taverna. É lá que vendem o tratol. Mandas encher as latas, pagas e regressas".

Isto aos 16 anos de idade. Vejam só! Mas fui direitinho ao destino. Às vezes, quando penso nisso, interrogo-me se era eu era um rapazinho esperto, ou se a esperteza era do burro que, se calhar,  já conhecia o caminho de cor e salteado por razões do seu ofício.

BURRO-REDZNa dúvida reconheço que burro fui eu quando, no regresso, sensível almocreve que tem pena do animal que o serve, resolvi aliviá-lo da carga, por algum tempo. E vai daí, tirei-lhe as latas de cima do lombo e pu-las no chão, enquanto eu recuperava as forças sentado numa pedra. Nos meus infantis cálculos estaríamos a meio caminho e se eu estava cansado de andar e merecia uma folga, igual direito tinha o animal.  Aconteceu isso junto às ruínas de uma velha alquilaria, ao lado da estrada, bem perto de Magueija, cujas paredes da fachada principal da casa ainda se mantinham de pé há pouco tempo.

Tirar as latas das cangalhas e colocá-las no chão, foi tarefa fácil. Carregá-las novamente é que foi o cabo dos trabalhos. Metida uma lata na cangalha respetiva, sem contrapeso do lado oposto, a albarda, apesar de bem cilhada, rodava e eu não conseguia chegar à boca da outra para nela encaixar a contracarga. Bonito serviço. Fiz várias tentativas e nada. Quase entrei em pânico, pois o facto de estar parado  na ESTRADA NACIONAL Nº 2 pouco me valia, já que, nesse tempo, só de longe em longe passava um carro ou pessoa a quem eu pudesse pedir ajuda.

Sem ter a quem pedir auxílio teria de ser eu sozinho a resolver a embrulhada em que me meti. E foi a pensar e a repensar (a dificuldade aguça o engenho) que desembrulhei a solução. Depois das várias tentativas falhadas, aproximei o burro da parede por forma que, lateralmente, uma das canhalhas ficasse resvés com ela. Coloquei as duas latas no chão em posição conveniente e depois de meter na armação de madeira a lata do lado da parede, encostei o ombro ao burro e pressionei-o seu corpo contra ela, por forma a que a albarda não tombasse para lá. Eureka! O burro cedeu, a albarda não descaiu e eu lá consegui encaixar a segunda vasilha e pôr a carga no sítio. Mas suava por todos os poros. E mais uma vez, a tantos anos de distância, me pergunto se eu era um rapazinho esperto, ou se esperto e inteligente foi o burro, que ao ver atrapalhação do aprendiz de almocreve, por prática de ofício, resolveu colaborar na solução.

Imagine-se com 16 anos de idade e tentar levantar uma lata de vinte litros com uma só mão. Não consegue. Creio que me custou mais escavar a solução na cabeça do que vencer o cansaço resultante de todos os quilómetros andados. Seguramente descalço sobre o piso de macadame que nessa altura listava a via rodoviária a que venho dedicando estes  APONTAMENTOS. A mesma que, tanto quanto se deseja, virá a ser uma ROTA TURÍSTICA NACIONAL com vista a devolver aos povos que atravessa um pouco da animação e vida que tiveram outrora. 

E muito se enganam os políticos que julgam que Portugal é só Lisboa e as cidades do interior ligadas por vias rápidas e autoestradas. O tempo mostrar-lhes-á o acerto ou desacerto das suas decisões legislativas e executivas. A DESERTIFICAÇÃO que hoje se vê de grande parte do país é bem o reflexo das más decisões tomadas ao longo de séculos. A HISÓRIA É UMA LIÇÃO!

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.