Trilhos Serranos

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domingo, 12 março 2017 14:00

HISTÓRIA VIVA - 5

Escrito por 

LIVRO DE REGISTO DA ENTRADA DE PRESOS  NA CADEIA DE CASTRO DAIRE

Uma atitude pedagógica exercida junto das crianças, no meu tempo de menino, era ameaçarem-nos com o MEDO. E o MEDO incluía a vinda inesperada da CÔCA (certamente coisa má, mas abstrata, que nunca vi), o BICHEIRO e o POBRE que cirandavam, vivinhos da silva,  de saco a tiracolo de terra em terra e nos levariam dentro dele se o nosso comportamento se afastasse dos «usos e costumes». Somava-se o INFERNO, aquela fogueira medonha de labaredas constantes a devorarem as almas pecadoras e também a CADEIA que nos privava da liberdade.

Lembro-me bem dessa ATITUDE PEDAGÓGICA e procurei não exercê-la com os meus filhos e alunos.  E mais! Já na condição de professor, cheguei a advertir certos pais que, passados tantos anos, ainda recorriam a esse tipo de PEDAGOGIA: o medo.

Mas, se bem me lembro disso, também não me esqueci de uma expressão que continha um si própria um MANUAL DE PEDAGOGIA E DE SOCIOLOGIA.

Convém lembrar que estávamos  num tempo em que os DESENTENTIMENTOS e BRIGAS entre vizinhos ou forasteiros se resolviam, o mais das vezes, à PANCADA, resultando daí que um dos contendores fosse quase sempre parar aos HOSPITAL e outro à CADEIA. Daí também, certamente, surgir a expressão que adquiriu foros de ANEXIM popular, a tal de que me lembro bem: «no hospital e na cadeia todos nós temos uma tábua», lugares que devíamos evitar, sem, contudo, estarmos livres de neles virmos a cair. Mas, se caíssemos, não era o fim do mundo, pois ao anexim se acrescentava que «as cadeias foram feitas para os homens». De qualquer modo era uma espécie de AVISO À NAVEGAÇÃO: não se metam em SARRAFUSCAS, de contrário, um lugar desses vos espera.

No que a mim respeita, posso gabar-me de, até hoje, ter usado pouco a «tábua do hospital» (duas vezes apenas para cirurgias menores) e garantir que (num tempo em que tanto se fala de milhões e de muitos suspeitos que deviam estar lá dentro e estão cá fora) eu  estaria "BILIONÁRIO" se tivesse alugado, por contrato mensal assinado,  a minha  "tábua da cadeia", pois nunca fiz uso dela, até nos 77 anos que levo de vida, nem tenho intenções de fazer.

Como é sabido o meu livro "JULGAMENTO", editado em 2000 e já há muito ESGOTADO, faz eco do conteúdo de um livro da "Entrada dos Presos na Cadeia Comarcã de Castro Daire" que engloba os anos de 1848 a 1866, bem no meio do Século XIX. Não havendo ainda a fotografia, cada preso deixava ali o seu retrato descrito, da cabeça aos pés: o nome, filiação, naturalidade,  profissão, tipo de crime praticado, vestuário que lhes cobria o corpo, etc. etc. Digamos que esse «livro de presos» é uma parcela de HISTÓRIA VIVA de Portugal, de "história com gente dentro" no rigoroso sentido da expressão.

Braças do Lá-Julio Ferreira rEDZUltimamente, tenho deixado aqui o "fac-simile" do «BOLETIM ANTROPOMÉTRICO»  dos presos entrados na mesma cadeia, nos anos de 1929 a 1937, isto é, princípios do século XX. A descrição do retrato foi simplificada e se isso facilitou a vida ao carcereiro, retirou informação preciosa ao historiador, nomeadamente a forma como iam vestidos, calçados, ou descalços. Hei-de voltar a isto, regressando ao meu livro "Julgamento", para vermos esses pormenores. Lá chegaremos.

No que a este último livro diz respeito, já deixei uma grelha com o número de homens e mulheres postos atrás das grades, os crimes praticados e o seu grau de escolarização, ainda que outros crimes houvesse não incluídos na grelha, por exemplo "preso por ameaça", por "falta de licença de uso e porte de arma", por "dano", etc. etc. Deixei igualmente o "fac-simile" do BOLETIM ANTROPOMÉTRICO e alguns desses boletins havia que, dada a reincidência de ENTRADAS E SAÍDAS do preso, tornava-se escasso o espaço para as anotações. É o que vemos agora relativo a Júlio Ferreira, dos Braços de Lá, preso com 18 anos de idade.

Antes de fixarem a vossa atenção na FILIAÇÃO reparem nas NOTAS escritas à margem da folha e no fundo. Preso em 16 de Julho de 1929, por «ofensas corporais» a nota de rodapé acrescenta que ele deu «entrada novamente em 21 de novembro de 1929 a fim de cumprir a pena seguinte: condenado em 15 dias de prisão correcional, 5 dias de multa a  1$00 por dia, 100$00 de imposto de Justiça, por não pagar tem de cumprir 40 dias de prisão».

E a nota feita à margem direita da folha, em cima, reza: «Deu novamente entrada nesta cadeia no dia 17-1-930 pelas 21 horas», logo seguida de outra nota: «Deu novamente entrada nesta cadeia 15 de maio de 1930» e logo outra: «Deu novamente entrada nesta cadeia em 21 de Agosto de 1933 por ofensas corporais» e logo outra: «Deu novamente entrada nesta cadeia no dia 27 de Outubro de 1937 a fim de cumprir a pena a que foi condenado em 3 dias de multa a 7.00 por dia e 50.00 de imposto de Justiça pelo crime  185 do Código Penal parágrafo 3º, embriaguez».

Filho «natural» de Eufémia Ferreira (sem pai nomeado) preso aos 18 anos por «ofensas corporais»  com «uma cicatriz na mão esquerda entre o dedo polegar e o indicador», analfabeto, eis o tipo de jovem que faria da cadeia a sua morada quase permanente e na sua mão levava a cicatriz, como imagem de marca. Mais palavras para quê? Só mais algumas. Eu nasceria dois anos depois da última vez que este jovem entrou na prisão. Por isso, quem me vier dizer, como já ouvi algumas vezes que "antigamente é que era bom" pode estar certo que lhe atirarei às ventas documentos como este.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.