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quarta, 15 março 2017 15:27

HISTÓRIA VIVA - 6

Escrito por 

SAGRADA FAMÍLIA 

Em menino, não sei bem precisar a idade, fui atacado por uma espécie de eczema atrás de uma das orelhas que me incomodada sobremaneira. Um vermelhão com pontos brancos era a parte visível e os seus efeitos uma comichão dos diabos.

O meu pai era entendido em coisas de medicina e não atinava com os pós e as pomadas que, ao tempo, estariam disponíveis nas boticas, certamente. Não acreditando ele em rezas, benzeduras e mezinhas, caseiras, a minha mãe, à socapa, levou-me à tia Rosa Abadinha, especializada nesses saberes tradicionais e à minha tia Leonor (casada com o meu tio João Beioco) que, tanto quanto é da minha lembrança, fez uma cercadura em torno da zona afetada com tinta azul E disse as palavras mágicas do costume, certamente com padre-nossos e ave-marias, pelo meio. Mas o mal não passou e eu continuava com o meu sofrimento. Nem queiram saber o que uma criança sofre quando um mal desse o ataca e logo atrás de uma orelha

.Deve ter sido por isso que o meu pai, amigo dos médicos e farmacêuticos de Castro Daire, resolveu levar-me à vila. E aproveitou a ida à sede do concelho de dois irmãos que viviam perto da Eira da Fraga, que tinham uma burra e eu podia fazer parte do caminho de ida e de regresso a cavalo. Era o tio Manuel Cachopo e a sua irmã tia Mabília, ambos solteiros a viverem sob o mesmo teto, pessoas tão simpáticas quanto solitárias.

O burrinho - CópiaO tio Manuel Cachopo era de poucas falas, mas com um sentido de humor apurado. Contava anedotas sem fim e eu prendia-me a ouvi-lo. Nunca me esqueci de uma analogia por ele feita aquando do nosso regresso à aldeia, no dia que fomos juntos a Castro Daire. Não sei porquê, a estada na vila foi mais demorada e a noite começou a cair-nos quando já tínhamos passado Ferejinhas, logo a seguir a Lagoa, o Chão do Irão, a Fonte Fria e, quando chegámos ao Fragão, donde já se avistava Cujó, era noite escura. Dalí começámos a ver-se as primeiras luzes das moradias a espreitarem pelas janelas. Luzes mortiças das candeias a petróleo, pois a eletricidade era um milagre do porvir.

Nesse sítio, indo a tia Mabília montada na burra, eu sentado no colo dela e o Tio Manuel Cachopo tangendo o animal, mal lobrigámos as luzes da aldeia, ele disse naquela sua voz calma e de santo homem, como que cheia de surpresa e espanto: "será Belém!". 

Pequeno como era, na altura eu não entendi a analogia. E estranhei que ele não soubesse o nome da aldeia que tínhamos pela frente, pois até eu sabia que era Cujó. Viria a entendê-la mais tarde, pois, naquela minha ingenuidade de menino,  ficou-me na memória inscrita a escopro de canteiro. Só uma pessoa de espírito, num quadro humano e rural assim, podia fazer da sua irmã a Virgem Maria, de mim o Menino Jesus e de ele próprio o São José. Os quatro íamos a caminho da terra natal, como a Sagrada Família ia a caminho de Jerusalém, fugidos ao Rei Herodes.

Cujó-Cachopo-RedzE vem tudo isto a propósito de JOSÉ ANTÓNIO CACHOPO, seguramente um parente ou ascendente de Manuel Cachopo, sabe-se lá fugido de quê, ter passado pela Cadeia de Castro Daire, vindo da Cadeia de Lamego, sem que o auto de prisão, lhe atribua qualquer crime. Ora vejam: 

«Aos dezoito dias do mês de Novembro de mil oitocentos e cinquenta e três, pelas sete horas da tarde, entrou nas Cadeias desta vila o preso José António Cachopo vindo das Cadeias de Lamego acompanhado do oficial de diligências José Lourenço e disse que era solteiro natural do lugar de Cujó , filho de António Joaquim  e de Joana  já falecida. Que tinha de idade quarenta e oito anos e os sinais são os seguintes = rosto redondo, cor trigueira, barba preta, cabelo preto = e fica à ordem do Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito.

O Carcereiro

José Ignácio Costa

Nota à margem direita"Foi mandado pôr em liberdade a 20 do dito mês de 9bro. Por ordem do Exmo. Sr. juiz".

Entrou a 18 e saiu a 20. Não foi preso por coisa grave, seguramente. E, tal como o tio Manuel Cachopo, (o São José da minha narrativa de infância) que eu sempre admirei pela bondade e humor que espargia em seu redor, senti por este JOSÉ ANTÓNIO CACHOPO, preso em 1853, uma certa admiração. Fosse pelo que fosse, o seu nome, associado ao nome da minha terra natal - CUJO - ficou registado num livro. Ficou para a HISTÓRIA, ao contrário de tantos outros que ali nasceram, viveram e morreram sem deixarem rasto. Não fora a sua certidão de nascimento e a certidão de óbito e nunca eles, homens e mulheres, teriam existido.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.