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sábado, 22 dezembro 2018 14:25

CAÇA - O VALOR DA FISGA

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CAÇA - O VALOR DA FISGA

Nos meus trilhos da investigação, mira posta nas fontes de conhecimento, manuscritas e impressas, quando lecionava na Escola Preparatória de Castro Verde, assestei pontaria num documento  existente no arquivos da Câmara Municipal (um livro de atas) relativo ao ano de 1680.

A folhas tantas surgiu-me o registo de uma Postura Municipal reportada ao “ROL DOS PARDAIS”. Claro que, ávido de conhecimento, tal como o caçador disposto a saborear a peça em que põe a mira, não larguei o gatilho até chegar ao fim da leitura.

pardais-bastantes - Cópia

Dei conhecimento público da caçada no boletim “Castra Castrorum” que, então, se editava naquela vila, no qual colaborava a pedido do seu fundador, um jovem advogado, Dr. José Guerreiro, colaboração que nos tornou amigos, até hoje. Ele em Castro Verde e eu em Castro Daire.

Ora, neste tempo de Facebook e similares, suportes de escrita sem necessidade de papel, caneta e tinta, tem cabimento dizer que esse boletim chegava aos seus leitores policopiado com os textos batidos à máquina de escrever, em papel de cera. A duplicadora automática (tecnologia de ponta à época) fazia o resto.

Tem cabimento lembrar isso e também trazer à tona o dito “ROL DOS PARDAIS”, pois, se diferentes eram os tempos de escrita e sua duplicação, bem diferente é hoje também a forma de pensar sobre a natureza e, garantido é que nenhum vereador municipal se atreveria atualmente a subscrever aquela Postura Camarária. E não estou a ver o «porteiro» municipal postar-se à porta da igreja, ao fim da missa, e lançar «pregão» do seu conteúdo, sem sair de lá corrido à pedrada ou coberto de expressões ligadas à sua santa mãezinha, como soe fazerem as pessoas que têm o dicionário vernáculo na ponta da língua.

Eis o texto::

pardais Ranos-Aos quinze dias do mês de Abril de mil seiscentos e oitenta anos, nesta vila de Castro Verde, perante mim, escrivão da Câmara, apareceu Francisco Guerreiro, porteiro deste concelho e por ele me foi dado fé que ele, por virtude e mandado dos oficiais da Câmara desta vila, pregoava para toda a vila ao domingo na porta da igreja, saindo a gente da missa, para que todos tivessem notícia do pregão da postura da Câmara sobre os pardais. Em que o dito porteiro pregou que cada morador deste povo, assim da vila como do termo da légua a dentro, trouxesse,  como era obrigado a trazer, em cada um ano, meia dúzia de pardais, sendo novos, e sendo velhos quatro, com pena de duzentos reis para o dito concelho em que seria condenada toda a pessoa que os não trouxesse. E neste presente ano de mil seiscentos e oitenta os levassem à casa do escrivão da Câmara para (ele) haver por desobrigados todos aqueles que lhe apresentassem a dita quantia de pardais. E de como o dito porteiro, por mando dos ditos oficiais, pôs em execução e apregoando a dita postura da Câmara” (...) dou fé”.

Na contracapa desse livro, em pele genuína, lia-se o título seguinte, que eu destaco a negrito e letra maiúscula: «ROL DAS PESSOAS QUE TROUXERAM PARDAIS NESTE ANO DE 680».

Título logo seguido dos nomes de 112 moradores da vila e termo, bem como o número de pardais que cada um deles entregou. Ao todo somaram 1.102 pardais, o que corresponde a uma média de 10 pardais por cada morador identificado. E ao nome de alguns moradores, para além da identificação pessoal e respetiva morada, junta-se a sua profissão: alfaiates, tecelões, almocreves, ferradores, sapateiros,  barbeiro, pedreiro, tendeiros.

Desde logo anotei estas profissões, pois visando esta Postura, certamente, a proteção das searas, que tinham nos pardais “uma praga” constata-se que ela se aplicava a todos os munícipes e não somente aos agricultores.

pardais22Aconteceu que a sua redação viria a ser alterada, posteriormente, e os moradores em vez de entregarem os «pardais inteiros, novos ou velhos» passaram a entregar somente «as cabeças» deles. Donde se infere (especulação minha) que os «oficiais da Câmara» (os vereadores) procedendo à alteração da Postura, visaram esvaziar as suspeitas e falatório que, eventualmente, corria no povo. Os pardais serviriam para  saborosas arrozadas em casa do escrivão que os recebia. Alterada a letra da Postura e com a entrega, somente, das cabeças dos pardais, acabava-se a suspeita e o falatório.

Dito isto, e extraídas as conclusões permitidas pelo documento, sabedores de que os homens do campo, os lavradores, sempre souberam usar esparrelas para apanhar a bicharada que lhes roía ou debicava a lavoura, resta saber quais as “armas de caça” a que botavam mão os «alfaiates, tecelões, almocreves, ferradores, sapateiros,  barbeiros, pedreiros e tendeiros» para cumprirem a sua obrigação de munícipes.

Ora, pondo de lado a hipótese de que eles caçassem pardais com balázios de arcabuz ou bacamarte, e não sendo de crer que fizessem uso das armas do seu ofício, v.g. os alfaiates caçassem pardais a laço feito com as linhas de coser roupa; os ferradores atirando-lhe com o martelo; os sapateiros mandando-lhes as sovelas como setas e os barbeiros a pegarem-nos com bolinhas de sabão, etc. etc. eu alvitro que, para o efeito, estes profissionais, para cumprirem o apregoado à porta da igreja, ao fim da missa, e escaparem ao pagamento de 200 reis para os cofres do concelho, recorressem à mão-de-obra disponível, isto é, às crianças, aquelas que, no campo, nas aldeias e vilas rurais, ignorando, então a expressão «trabalho infantil», mas conhecendo bem o adágio «quem não trabuca, não manduca», melhor dominavam a arte das esparrelas tradicionais. Tornados, assim, caçadores em idade escolar, quando escola não havia. Todavia, escolarizados estavam no adagiário popular «rebeubeu, pardais ao ninho» (perdoem-me todos os que não gostam do adagiário camponês, que mete todo o tipo de bicharada) e, por isso, sabiam muito bem quando, como e onde caçá-los. E o que me leva a pensar assim?

FISGADevo dizer que, ao assestar pontaria nesta postura camarária, logo me ocorreu à memória o tempo em que, na serra, nos meados do século XX, guardando gado, sendo eu ainda menino, fui hábil a manejar, não a esparrela tradicional, mas a «funda» e essoutro objeto com forma de “Y”, conhecido por FISGA, em cujos braços se atavam dois elásticos com um trapo a meio para nele assentar a “pedrinha” que servia de projétil. A «funda», dois cordéis com laçadas nas pontas e uma tira de trapo a uni-los destinada a segurar a pedra, punha-me no lugar de David e o Golias era qualquer penedo distante, contra o qual, depois de meia dúzia de voltas com o braço a ganhar balanço,  soltava uma laçada, e arremessava a pedra, treinando assim a pontaria e a força. A FISGA, lembro-me bem: descoberto o alvo, melro, gaio, rola ou pardal, braço direito estendido, o polegar e o indicador da mão esquerda a servir de tenaz, segurando o projétil, elástico esticado, pontaria feita...záz...era “tiro e queda”. Pois era, assim mesmo, daquele jeito. Só muito mais tarde eu soube o que era pôr uma espingarda à cara e...tau... tau..”tiro e queda” ou...tau ...tau... ”tiro e foge”.

Quando li aquela POSTURA MUNICIPAL, em Castro Verde, já eu era um caçador encartado e tinha uma arma de calibre 12, monogatilho de canos sobrepostos. Um senhor! Mas a leitura desse documento não só me fez volver à minha juventude, mas também ao ano de 1680 e às, eventuais, artes rurais de caça e a sua aprendizagem de tenra idade. Enfim, fez-me apreciar e valorizar a FISGA, bem posterior à armadilha de laço. Um «brinquedo» manufaturado por mim, arrancado à pernada de uma piorneira.

Outros tempos. E, pelo que vou vendo, creio que a eles teremos de retornar para que, diminuídas as armas de repetição, as nossas serras, campos e vales voltem a ser povoados com a bicharada de antanho, efetivos tais e quantos que legitimem Posturas Municipais semelhantes à de Castro Verde, com vista manter o equilíbrio e a sustentabilidade do ecossistema de que fazemos parte.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.