Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas SOLAR DOS BICOS
quarta, 15 janeiro 2020 14:25

SOLAR DOS BICOS

Escrito por 

NÓS E OS ANIMAIS

Nascido e criado na serra, rodeado de seres humanos, de quadrúpedes e de animais selvagens e domésticos, emigrado que fui para uma cidade, um autêntico formigueiro humano, separado dos antigos companheiros de trabalho e de sinfonia alada, tendo por esposa uma profissional de ensino, minha companheira de liceu e da universidade, também ela de origens rurais, que, na cidade, muito jovem ainda teve como “primeiro emprego” a venda passarinhos num estabelecimento do ramo, forçoso era que, nesse meio urbano, ambos sentíssemos e víssemos nos passarinhos engaiolados o elo da cadeia que nos ligava às origens rurais e à natureza envolvente. E vai daí, toca a adquirir um casal de canários e respetiva morada gradeada para nos fazerem companhia e alegrarem o lar com as suas cantorias.

PRIMEIRA PARTE

Instalado o casal no seu castelo, gaiola esférica a imitar o globo terreste, semelhante ao que apresento na foto anexa, era de lá, dos seus poleiros fixos e de baloiço, que, com os seus trinados, nos agradeciam o trato e nos ligavam ao mundo perdido e rural da nossa infância. E, recuando milénios, direi mesmo que nesta nossa relação de condomínio estava o distante nundo selvagem em que humanos e bichos coabitavam livremente.

gaiola-2 - CópiaDevo dizer que estávamos nos anos 60/70 do século XX e, para sossegar os novéis defensores dos “direitos dos animais”, acrescentar que nós tínhamos com os canários uma relação muito especial. Os pais e os juvenis nascidos e criados lá em casa, era ponto assente que integravam a família. Estudados os cuidados que os pais tinham com os filhos no que respeitava à alimentação, para além das sementes à disposição no mercado, nós cozíamos ovos de galinha, amassávamos as gemas e, colocada essa pasta amarela nos comedouros, era apreciar os pais num “ver se te avias” a encherem os papos e correrem para o ninho e lá regurgitarem a comida para os bicos abertos das crias, pescoço esticado…«a mim...a mim...a mim... a mim...»

E assim se tornavam adultos, robustos e sadios.

gaiola-1a - CópiaHabituados a esvoaçarem livremente pelo espaço caseiro, mal entrávamos em casa chegados das aulas, eles mostravam evidentes ensejos de saírem do seu reduto fechado. Eles piavam, eles esvoaçavam, eles contorciam-se pendurados nos arames da porta. Faziam-se entender, eram entendidos e atendidos. Porta aberta...ala, rasgavam os ares domésticos e não tardavam a meter-se na “banheira” que os esperava sobre um banco, posto propositadamente em lugar estratégico. Ali metidos e assim treinados, batiam as asas, aspergiam sobre si próprios a porção de água que entendiam necessária e, de seguida, levantavam voo para cima da gaiola dispostos a secarem a roupa com a ajuda do bico. Penteavam-se e catavam-se demoradamente. Tratavam da toilete. Até lembravam certas peraltas e damas do século XVIII a enrouparem-se a perfumarem-se antes de rumarem a um qualquer salão de valsa. Depois davam mais uns passeios e regressavam ao lar por iniciativa sua.

Mas, nestas suas deambulações livres pelo espaço caseiro, como que agradecendo o nosso gesto humano, ora nos pousavam nos ombros, ora nos joelhos, ora faziam voos rasantes junto do nosso nariz, chamando a nossa atenção, quantas vezes desviando-nos das nossas leituras, estudos e outros quefazeres caseiros.

SEGUNDA PARTE

solar dos bicos - CópiaMantendo o hábito adquirido em Moçambique, lá, no hemisfério sul, que era o de ter os canários engaiolados em casa, uma espécie de tenores domésticos alados oriundos do hemisfério norte, a lembrar-nos incessantemente, as nossas origens de bichos humanos, retornados que fomos ao hemisfério de origem, passado o equador em sentido contrário, forçoso era que gaiolas tivéssemos em casa com passaredo vário, incluindo periquitos, esses “encantos palradores” de bico curvo, a lembrar-nos as terras distantes onde estivemos. Nós e os nossos arreigados apegos às coisas que tivemos e perdemos nestas nossas andanças pelo mundo.

Desta feita, radicados num meio rural, a residir numa velha moradia de aldeia, adquirida em fase de pré-ruínas, cuja arquitetura original incluía e foi mantida, no restauro, uma varanda de pedra sob a qual existiu, um galinheiro no tempo do anterior proprietário, foi nossa opção fazer daquele reduto uma gaiola e meter ali o gado alado canoro e domesticado. Postas as redes, a minha mulher escreveu no topo da portinhola a legenda “SOLAR DOS BICOS” e na base o esboço de duas aves, frente a frente.

Moraram ali rolas, periquitos e outros bicos cantantes domesticados. Isto até darmos por finda a criação e a gaiola virar espaço de arrumações, armazém de coisas inúteis ou à espera de reciclagem.

pisco - CópiaRecentemente notei que um “pisco-de-peito-ruivo” rondava por perto. Filmei-o a cantar no meu quintal e vi-o esvoaçar furtivo sob as folhas do limoeiro, plantado no pátio, junto da gaiola que antes foi galinheiro. Das duas situações fiz vídeo que alojei no Youtube.

Era isso. Ele encontrou livremente guarida segura no espaço que antes fora de rolas e periquitos aprisionados. Havia que facilitar-lhe a vida, na entrada e na saída, evitando que os gatos fizessem o mesmo. Eles, esses felinos, sempre lestos a formarem o salto, a ferrarem as garras na vítima desprevenida e a saborearem a presa que lhes coube em sorte.

Estudei o processo. E tão bem sucedido fui que dou por mim a ver um ninho lá dentro, em sítio recatado e o proprietário a empoleirar-se nos ramos e varões que lá coloquei para o efeito.

pisco-1a - CópiaAposentado, com tempo disponível, a minha câmara de filmar tomou o lugar da fisga da minha meninice. E, levado pela idade, lembrando caminhos andados e atitudes relacionadas com os animais, comparo a sorte deste pisco (livre que nem um passarinho) com a do passaredo que ali viveu prisioneiro. Ele, o pisco-de-peito-ruivo, entra e sai quando quer. Tem comida e agasalho garantidos. Furtivo embora, não se assusta vendo-me por perto. Só falta falar comigo. Regalo-me com os seus trejeitos de pescoço, a sua cauda a dar a dar e sei que é ele que, nos seus tímidos gorjeios, antes de qualquer outro, me anuncia a chegada da primavera. Ele que também, na fauna alada,  é o último anunciar a chegada do inverno. É só ver o vídeo que alojei no Youtube com o título “Passarinho no Quintal, 2019”, no seguinte link:  https://youtu.be/O3s8g3kpLlk.

Enfim, o pisco-de-peito-ruivo é o atual dono e senhor do “SOLAR DOS BICOS”.

Ler 949 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.