Trilhos Serranos

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quinta, 30 outubro 2014 14:38

RIO CALVO

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Se o leitor, sentado à frente do seu monitor,  se der ao trabalho de botar os olhos no «Google Earth» e escrever CUJÓ no espaço destinado à investigação, verá aparecer e rodar o globo terreste e, depois de parar,  deixar ante si a povoação que procura. E verá ao seu lado direito uma linha verde escura, de norte para sul, orlada de arvoredo, que mais não é senão um regato que, na terminologia e geografia local, é conhecido pelo nome de rio «CALVO».

 Mas as «Inquirições de 1758», reportando-se à freguesia de S. Joaninho, integrada então no Couto da Ermida do Paiva,  dizem que  «tem esta terra um regato que principia em um monte que chamam Panascais, corre de norte para sul, une-se com outro regato que (vem) da vila de Pendilhe que chama Rio Mau e fenece no Rio Paiva». E mais à frente diz chamar-se «rio S. Joaninho» que «nasce arrebatado», que «não é navegável», que  «cria alguns peixes que chamam trutas em pouca quantidade», que se «cultivam as suas margens e arredores e tem algumas árvores infrutíferas», que «tem um pontelo de pedra por onde passa a gente no tempo de inverno». E que «tem alguns moinhos que moem no inverno».

  Não sei quando o nome CALVO lhe foi aplicado, mas sei muito bem, que ele começa, a bem dizer, no sítio do Portinho[1], onde confluem duas linhas de água em forma de um V maiúsculo com o Outeiro do Meio a separá-las, uma descendo dos Panascais, como referem as Inquirições e outra da Fonte Costa e Bica Grande, sendo que esta, a montante do Portinho, recebe outra que vem do Vale da Fraga, com o monte Boi Alvo à sua esquerda.

 Com um curso aproximado de 5 quilómetros, a partir das nascentes até à foz, ele foi para Cujó o que o rio Nilo foi para o Egipto. Nas suas margens se cultivou tudo o que o homem serrano conhece desde o Neolítico para fazer pão e caldo. As «Memórias Paroquiais de 1758» acima referidas dizem taxativamente que «algumas terras se cultivam e seu fruto é centeio e algum trigo e milho e vinho pouco e verde», descrição que confere com uma escritura de «prazos» pertencentes ao Mosteiro das Chagas de Lamego, feita a favor dos enfiteitas de Cujó, José Vaz e mulher, em 1818, que referindo-se ao «foro» pago em géneros diz ser em alqueires e quartas de «centeio e milho», conforme a área. Sendo que este último era, verosimilmente, o «milho miúdo» pois o «milho grosso», chegado a Portugal no século XVI, vindo do Brasil, bem como a charrua que já lavrava as terras centro europeias na Idade Média, ainda não tinham chegado a este rincão serrano, como já historiei no meu livro «Cujó, Uma terra de Riba-Paiva», editado em 1993.

            Nessa escritura vemos que as terras de regadio eram semeadas com centeio e milho, mas, com a chegada da charrua, passaram a ser usadas para o cultivo da batata, milho grosso e feijão. O centeio deixou o vale e foi remetido para as terras laterais, mais afastadas e mais pobres das encostas, para a zona de Vale de Carvalho e da Touça, esta a descambar para o Rio Mau e, no lado oposto, para as terras chãs atrás do Mancão, a competirem com os lameiros para pastos e feno nas margens do rio Paivó, vizinho da povoação da Relva,freguesia de Monteiras,  vindo da Lameira do Abade, lá para os lados de Várzea da Serra.

 Nas terras centeeiras, de solo arável delgado e solto, manteve-se em acção o arado de pau radial celta, com relha de ferro e nas terras fortes do vale, regadas pelo rio Calvo, a charrua de ferro de aiveca móvel tornou-se dona e senhora a partir dos fins do século XIX. Vejam como o progresso só penetra no interior muito  lentamente. A junta de vacas que puxasse um arado radial e uma charrua de aiveca sabia a diferença. Lavrar uma terra centeeira a puxar um arado de pau, com o cambão preso ao tamoeiro suspenso no jugo assente nas molhelhas encaixadas entre a cornadura,  era uma espécie de passeio e diversão serrana. As vacas não faziam grande esforço. Mas puxar uma charrua de aiveca móvel e rasgar a terra forte do vale, «tente Ramalha ó rego», não era pera doce e os animais tinham de mostrar que valiam o feno que comiam e o trato afetuoso dos donos e lavradores, mesmo que, de quando em quando, o ferrão da aguilhada lhes mordesse a pele.

 As águas do Calvo, que irrigavam os campos e lameiros, faziam girar também os moinhos que se estendiam ao longo do seu curso. O primeiro, mesmo aos pés da povoação, é conhecido pelo nome de «Moinho da Ponte». Isto por ser ali que havia um pontelo (será o mesmo que referem as Memórias Paroquiais, de 1758?) , depois transformado em ponte, que ligava as duas margens e por onde as pessoas e gados da povoação se deslocavam para as terras mais afastadas do rio Mau e da Moirisca, da outra banda do Santo António. O último é o moinho de Vale de Cavalos. Entre o primeiro e o último se localizavam alguns mais, cujo historial deixei no vídeo disponível no Youtube, a que pus o título «Moinhos do Rio Calvo» e cujo link aqui deixo como complemento deste texto. É só clicar: http://youtu.be/Jg1Y2jDdztE



[1] Porto, portas e derivados se dizia o local de passagem, fosse a atravessar  um rio, fosse na passagem mais fácil no cume de uma serra. Em Castro Daire, temos as «Portas do Montemuro», no topo da serra,  e no rio Paivó, como rezam as «Inquirições de 1258», o «Porto do Godinho», à beira de Fareja, onde existem uma «poldras», atualmente sob os viadutos da A24. 



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.