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segunda, 16 maio 2016 12:22

CUJÓ - RETALHOS DE HISTÓRIA II

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Na crónica anterior coloquei a hipótese de o livro «Nova Floresta, ou Sylva de vários apophthegmas» da autoria do Padre Manuel Bernardes da Congregação do Oratório, autorizado a ser impresso pela Mesa Censória do Santo Oficio, em 20 de Julho de 1706, ter sido pertença do Padre João Duarte, natural de Cujó, Reitor do Touro, em 1817. Referi que na margem de uma das suas folhas se encontrava uma anotação manuscrita a lápis a dizer que o livro pertencia «aos herdeiros de João Duarte» e refiro agora que noutra página, em rodapé, aparece também manuscrito o nome de «José Morais».

 

Como se trata de uma obra de apologética cristã, ainda que outros cidadãos de Cujó viessem, depois do Reitor, a ter o mesmo nome (eu ainda conheci um deles, o «tio» João Duarte), natural era que o livro tivesse sido herdado e lido por outras pessoas, mas nunca adquirido por elas nos fins do século XIX e primeiro quartel do século XX. 

Seja como for, o facto é que, à margem do valor intrínseco da obra, perdidas entre as folhas do seu miolo, ficaram guardados alguns documentos, um deles ligado à pecuária, com data de 1881, e outros ligados ao pagamentos de impostos. Um datado de 1903 e outro de 1927, o que nos leva a concluir que os proprietários de então estavam mais preocupados com a gestão da sua vida quotidiana do que com a filosofia e doutrina contida na «Floresta» do Padre Manuel Bernardes.

Vamos por partes:

IMG 1681Tão negro de fumo como o livro (nas casas das aldeias nortenhas, outrora sem xaminés, o fumo que conservava o fumeiro, conservava tudo o que ficava debaixo de colmo) ficou um caderninnho, de 25x10, cosido com fio norte, contendo apontamentos manuscritos de precauções a ter com o gado bovino, lanígero, caprino, suíno  e, também,  receitas para ferimentos ou «maleitas» inesperadas. 

Copiemos a seguinte advertência, mantendo a ortografia da época:

«acontecendo que animais doitra especia lanígero caprino ou suíno  sejão também atacadas pelo febre aphetoza o tratamento deles rigular-si-a pelo que fica endicado para o gado Bovino. Intendência pecuária do destrito deviseu em 19 de demarcço de 1881.
O jntentente de pecuaria
António Augusto dos Santos»
«Este fulhete foi estreladado do fulhete que veio do governo. 
Foi estreladado no dia 12 de Julho de 1881 em Cujó
Francisco Pereira demorais e Silva Solteiro».

A par deste caderninho ficou também o recibo que José Lourenço, em de 1903, guardou como prova de ter satisfeito o foro devido ao Mosteiro das Chagas de Lamego e a prova de que, Maria Duarte, viúva,  em 1927, cumpriu as suas obrigações para com o Estado, manifestando, junto do Regedor de Cujó, João Pereirinha e Silva, a quantidade de lã branca e preta produzida, IMG 1682confirmação assinada, a rogo, por David Duarte Pereirinha, nada menos que o pai da minha cunhada Isabel que, como já disse na crónica anterior, juntamente com o marido, o meu irmão António, me ofereceram esta relíquia.

      

Temos assim que o livro, ao longo do tempo, com a nota de pertencer aos «herdeiros de João Duarte», andou pelas mãos das famílias «Morais», «Lourenços», «Duartes» e «Pereirinhas»,naturalmente mais interessadas na luta pela sua sobrevivência do que nos apophthegmas nele contidos. . Negro de fumo, desgastado pelo tempo, capas grossas, necessidade houve de levá-lo ao sapateiro para este «cirurgião de calçado», à força de sovela e de fio norte, não o deixar desfazer de todo. A este conserto se pode dizer, com toda a propriedade, que não fez mal o «sapateiro ir além do chinelo». Tal zelo dos proprietários permitiu que eu pudesse manuseá-lo ainda hoje e sobre ele discorrer como discorro, aditando mais umas páginas à História de Cujó.

IMG 1683E a História me impõe que repesque para aqui duas linhas da escritura que tratei no meu livro «Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva», editado em 1993. Feita em 1817, em nome de José Pereira Vaz e mulher, reza que algumas das terras emprazadas pelo Mosteiro das Chagas de Lamego aos enfiteutas confrontavam com as terras do «Reverendo João Duarte, Reitor do Touro e outros de Cujó».

Ora, este clérigo, em 1871, aparece como sendo irmão de Luísa Duarte no testamento por ela feito, no qual ela deixou à sua filha Angélica «um, tear com todos os seus apeiros».

Estamos assim, e de facto, dentro da família «Duarte». Acontece que nos trilhos da vida, e sobretudo nos meios pequenos, as famílias do lugar cruzam-se por via do casamento. Mas não foi, seguramente, por essa via, que o Padre João Duarte, o tal Reitor do Touro, deixou descendência natural em Cujó. De facto, a memória oral reza que descendente de um Padre é  a  «tia» Marquinhas, diminutivo jamais atribuído às filhas de um «tio Zé» ou de um «tio Manel» quaisquer. Noutros tempos, tanto na aldeia, como na cidade, só meninos e meninas «filhas de algo» eram assim tratadas. E, a ser assim,  a descendente do senhor Padre tinha de ser tratada com a deferência que a progenitura impunha. As «Marquinhas», filhas e netas, também «Duartes», serrão ramos de tão frondosa árvore. 

Mas a minha convicção do livro ter pertencido ao senhor Reitor, em primeira mão, assenta também no facto de não bastar a qualquer a cidadão saber ler e escrever, digamos que de letras gordas, para ele se interessar e adquirir uma obra deste jaez. É que, como veremos em futura crónica, o censor da Mesa do Santo Ofício que deu parecer afirmativo para a sua impressão, disse que não se tratava apenas de um «livro», mas de uma «livraria». E em Cujó, livros e livrarias, mesmo no tempo  da minha juventude,  eram os gados, as ferramentas agrícolas, os moinhos, o pisão, os teares  e os seus apeiros.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.