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segunda, 16 maio 2016 12:14

CUJÓ - RETALHOS DE HISTÓRIA - I

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Creio que foi o meu irmão António, capitão do exército na reserva, e a sua esposa, Isabel Pereirinha, que me ofereceram um livro, velhinho de muitos anos, quase a desfazer-se, sem a página de rosto onde eu pudesse identificar o autor, a oficina de impressão e o ano de edição.

 

Livro impresso em ortografia arcaica, com sinais evidentes de ter sido usado e preservado em casas onde o fumo tanto servia para conservar o fumeiro como tudo o mais que estava dentro, na página 290, manuscrito à margem, lê-se: «este livro pertence herdeiros de João Duarte». 

IMG 1680Em tempo oportuno discorrerei sobre este nome, aventando a possibilidade dele corresponder ao do Padre João Duarte, natural de Cujó, que, em 1817, era Reitor no Touro, tal como historiei no meu livro «Cujó ? Uma Terra de Riba-Paiva», editado em 1993.  

Sabido isto, não fora a obrigatoriedade que existia dos autores pedirem licença ao Santo Ofício para poderem dar à luz as obras do seu labor, impossibilitado estava eu de saber os elementos acima referidos. Sem a página de rosto, salvou-se o livro nele podemos ainda ler o que respeita às licenças de publicação e respectivas datas.

E neste princípio do século XXI, tempo computadores, telemóveis, SMS, net,  blogues e twiteres  onde toda a gente escreve sem peias, alguns sem nome e sem rosto,creio ser deveras informativo e formativo, colocar aqui a tramitação da obra antes de chegar à tipografia e depois partir a «correr» mundo. Vejamos:

«LICENÇAS
Da Congregação
João da Guarda Presposito da Congregação do Oratório desta cidade de Lisboa dou licença para que se imprima este livro intitulado «Nova Floresta, ou Sylva de vários apophthegmas» composto Pelo Padre Manoel Bernardes da mesma Congregação, que foy revisto e approvado por pessoas doutas desta Comunidade, e para constar dey esta por mim assinada e sellada com o sello do meu oficio. Lisboa 5. de Março de 1702.
João da Guarda».

Temos assim a primeira data referida à obra. Mas continuemos:

«Do S. Ofício.

O Padre Mestre Fr. Francisco do Espírito Santo, qualificado do S. ofício, veja o livro de que esta petição trata e informe com seu parecer. Lisboa 10 de Março de 1702.
 Carneiro. Fr. G.Hasse. Monteiro, Ribeiro».

ILLUSTRISSIMO SENHOR
Vi o livro intitulado: «Nova Floresta, ou Sylva de vários apophthegmas», composto pelo Padre Manoel Bernardes da Congregação do Oratório desta Cidade, e não achey nelle cousa alguma que se opponha à pureza da nossa Santa Fé Catholica, nem offenda os bons costumes, senão muitas noticias curiosas, exemplos doutrinaes e documentos sólidos, tudo muy conforme o credito do seu Author. S. Francisco da Cidade em 2 de Mayo de 1702. Fr. Francisco do Espírito Santo
».

«O Padre M. Frey João de S. Domingos, Qualificador do Santo Oficio, veja o livro, de que esta petição trata e informe com seu parecer. Lisboa, 12 de Mayo de 1702.
 Carneiro. Fr. G. Hasse. Monteiro. Ribeiro».

«Li o livro intitulado «Nova Floresta, ou Sylva de vários apophthegmas», &c. compposto Pelo Padre Manoel Bernardes da Congregação do Oratório
 e não achando nelle cousa que encontre nossa Santa Fé, ou bons costumes, me parece não tem impedimento para se haver de imprimir.
 S. Domingos de Lisboa, 28 de Julho de 1702. Fr. João de S. Domingos».

«Vistas as informaçõens pode-se imprimir o livro de que esta petição trata, e impresso tornará para se conferir e dar licença que corra e sem ella não correrá. 
Lisboa 28 de Julho de 1702». Carneiro. Fr. G. Hasse. Monteiro. Ribeiro».

«Do Ordinário
Vistas as informaçoens pode-se imprimir o livro de que esta petição trata e depois de impresso tornará para se dar licença para correr. Lisboa 30 de Agosto de 1702.
Fr. Pedro Bispo de Bona».

 «Do Paço
 Mestre Francisco de S. Maria veja este livro e ponde nelle seu parecer o remeta a esta Mesa, Lisboa, 7 de Setembro de 1702. Oliveira. Mouzinho. Lacerda».

 «SENHOR
Foy V. Magestade servido mandar-me rever e censurar o livro que com o título de «Nova Floresta, ou Sylva de vários apophthegmas e ditos sentenciosos &c.»
 compoz e quer imprimir o Padre Manoel Bernardes da illustrissima e florentissima Congregação do Oratório e he este um dos casos em que o sacrifício da obediência
 foy utilíssima usura: porque li esta grande obra com sumo gosto e pudera com igual aproveitamento, senão obstara a minha miséria e frieza.
 He este livro digno assumpto da pena de seu Author, sempre pura, sempre apurada, bem aparada sempre. He parto genuíno do seu espírito e trofeo glorioso do seu talento; nunca escondido, sempre empregado na perene negociação das almas: «Negotiamini dum venio». 
Mais preciosas sem comparação que todo o mundo, este custou à Omnipotência Divina um só aceno: aquelas valor e preço infinito: este huma palavra: aquelas a propria vida (?)».

 E o censor, sempre nesta toada laudatória, enche mais duas páginas de prosa, que termina assim:

 «Merece o Author dignamente a licença que pede para que pela continuação desta obra (a qual nos promette muitas partes) se dilate nas do mundo à utilidade publica. Este he o meu parecer. Vossa Magestade ordenará o que for servido. Lisboa Santo Eloy, 15 de Setembro de 1702. Francisco de Santa Maria».

«Que se possa imprimir vistas as licenças do S. Officio e Ordinário e depois de impresso tornará à Mesa para se taxar e conferir e sem  isto não correrá.
 Lisboa 20 de Setembro de 1702. Duque P. Oliveira. Mouzinho. Lacerda».

«Está conforme com o seu original. S. Domingos de Lisboa, 19 de Julho de 1706.
 Fr. Manoel Guilherme».

«Visto estar conforme com o seu original pode correr. Lisboa 20 de Julho de 1706.
Carneyro. Moniz. Hasse. Monteiro. Ribeiro. Fr Encarnação».

«Pode correr, Lisboa 20 de Julho de 1706.
Fr. P.».

«Taxão este livro em 600 reis, Lisboa, 31 de Julho de 1706.
Oliveyra. Vieira. Carneiro».

E pronto, decorridos que foram quatro anos após a entrega do original à Mesa Censória (1702-1706) o livro pôde, enfim «correr» o mundo. 

Algures no tempo chegou a Cujó e em Cujó permaneceu truncado e fumado até que me veio parar às mãos. Graças a isso, posso hoje compartilhar com os leitores a sua longa caminhada. Mas não apenas para vermos a mudança dos tempos no que respeita à liberdade de pensamento e de expressão,mas também porque, perdidos entre as suas folhas, ficaram alguns recibos a comprovar o pagamento de foros ao Mosteiro das Chagas de Lamego.  É disso de que trataremos em futura crónica, para falarmos novamente do Padre João Duarte.

Abílio Pereira de Carvalho



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.