Trilhos Serranos

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quinta, 08 setembro 2016 11:38

A HISTÓRIA E OS QUE DELA GOSTAM - II

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ESCRIPTURA DE ESPONSAIS DE DOTE PARA CASAMENTO

Ela, de Iphone na mão, último modelo tecnológico de comunicação à distância sem fios, olhos fixos nos algarismos digitais visíveis no écran, polegar delicadamente curvado em V, «plen...plen...plen...» dedilha o número que pretende contactar. Os telefones de manivela e de disco com números rodados à força do dedo, são peças de museu.

 De ombro nu encostado ao tronco de uma das tílias do jardim, em tempo de floração a exalar, grátis e em redondo, aquele perfume intenso e inebriante  tão seu, cabelos atados na nuca, braços despidos, costas a descoberto, seios apetitosos que não para meninos de leite, blusa decotada suspensa no pescoço por uma espécie de alças, saia de pregas a beijar-lhe os joelhos, estendesse-se esta peça até aos pés e estaria ali uma cariátide em carne e osso, não a segurar o entablamento de um templo, mas ela própria um templo com a vestimenta ajustada ao corpo a realçar-lhe as formas. Mas que fêmea!...Uma escultura burilada não pelos escopros de Fidias, de Cutileiro e tantos outros que esculpiram mulheres nuas, mas pelo escopro do meu pensamento e desejos. Ela leva graciosamente o aparelho ao ouvido e, naquela postura evidente de quem sabe ter resposta do outro lado, espera com trejeitos de paz de alma. 

Por entre os dedos a segurar o aparelho descubro a maçã mordida da APLE e, num só instante, a minha formação catequética, transportou-me ao Paraíso e vi nela a Eva tal qual saiu da costela de Adão. Depois veio a maçã, o pecado, a folha de parra e as roupas da moda. O namorado, seguramente um Adão de fato e gravata,  atendeu e marcaram encontro à noite, depois do trabalho, no Bar da Esquina que ambos conheciam e frequentavam. Ela era médica de profissão e ele professor. Conversaram, comeram, beberam e acabaram a noite estendidos numa cama, assim mesmo, sem mais delongas, nem entraves postos por pais, mães e demais parentes próximos. Namoravam desde o tempo da Universidade, mas nenhum deles sabia se a relação acabaria em casamento ou na constituição de uma família nos moldes tradicionais e históricos. Assim mesmo, com a naturalidade trazida pelos tempos empurrados pela luta da "emancipação feminina".

1ª PÁGINA - Redz-aEstamos no século XXI e mau grado alguns "costumes" antigos se distenderem ronceiramente até aos nossos dias, a verdade é que a Terra inverteu os polos no que respeita à sexualidade, à relação livre homem/mulher. Nos tempos que correm, salvo raras exceções, os pais contam pouco ou nada na escolha do parceiro ou parceira dos seus filhos e filhas. «Quem bem faz a cama, bem se deita nela». A virgindade, tesouro de altar em tempos idos, perdeu o seu caráter sagrado. Só os pais mais conservadores se recusam a aceitar estas «modernices». Para eles, tudo devia fazer-se como «no seu tempo», ignorando que diferentes do «seu tempo» eram os «tempos anteriores» aos seus, os tempos em que casamento de gente de qualidade só se efetuava com «DOTES» garantidos, doados por pais e mães. Dotes constituídos por bens rústicos e urbanos (e também dinheiro) discriminados em escritura pública, feita por tabelião encartado do «Judicial e Notas» ao serviço de «El'Rei Nosso Senhor» com assento nos Julgados do Reino, espalhados por vilas e cidades.

E, de posse dos bens doados, os noivos dotados só podiam possuir-se a si próprios depois de «hum com o outro casarem e (...) receber hum ao outro por legitimo marido e molher, à face da Igreja, na forma do Sagrado Concilio Tredentino e constituição deste Bispado". 

Ora veja-se a seguinte «Escriptura de Esponsais e Dote para Casamento». Mantive a ortografia do manuscrito original, sabendo que, desviando-me dela, faria um grande favor àqueles que, ressabiados, veem no Novo Acordo Ortográfico, um atentado à Língua de Camões. Eles que cocem a comichão e leiam. Assim: 

"Escriptura de dote para casamento que foi o cappitam Mnel. Pinto Teixª. e sua molher do lugar de Passos de Sozelo, a sua filha D. Maria Amalia das Neves para casar com o tenente Antonio de Freiras Pinto e Sousa, do lugar de Villa Seca, freguesia de Pinheiro, este do concelho do Monção (sic) e aquelles do de Sanfins.

1ª PÁGINA - REDUZSaibão quantos este publico instromento de Escritura de Esponsais e dote para casamento, ou como em Direito e melhor se possa dizer e mais firme e valioso virem que sendo no anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e vinte e seis, digo, vinte e sete, aos honze dias do mez de janeiro do dito anno, neste concelho de Sanfins e lugar de Passos, da freguesia de Santo Andre de Sozelo termo dele e da comarca de Lamego e casa de morada dos doadores abaixo nomiados aonde eu tabeliam  vim de seu rogo para ffim deste instromento de Escriptura, o qual protesta dar a destribuição em tempo competente. E logo ahi perante mim e testemunhas deste instromento no fim delle nomiadas e assignadas apparecerão presentes as partes outrogantes a saber, de huma parte, como doadores, o cappitam Manuel Pinto Teixeira e sua molher Donna Theresa, deste lugar de Passos, da freguesia de Santo Andre de Sozelo deste concelho de Sanfins; e com elles sua legitima filha, digo, com elles, como dotada futura esposada, sua legitima filha Donna Maria Amalia Benedita das Neves, de idade de vinte e quatro annos; e do outro, como tambem dotado, futuro esposado, o tenente Antonio Freitas Pinto e Sousa, de idade de vinte e seis annos, do lugar de Villa Seca, freguesia de Pinheiro, do concelho de Monção (sic) e aquelles reconhecidos por mim tabeliam e das mesmas testemunhas que eu tambem reconheço de que dou fé e em presença delles e por elles outrograntes, futuros esposados, Antonio Freitas Pinto e Sousa e Donna Maria Amalia Benedita das Neves, me foi dito que se achavão justos e reciprocamente convencionados de palavras de presente para o futuro de hum com o outro cazarem e agora por esta publica Escriptura novamente se contratavão e prometião receber hum ao outro e o outro ao outro por legitimo marido e molher à face da Igreja na forma do Sagrado Concilio Tredentino e constituição deste Bispado: a cuja mutua reciporção permeação de casamento aceitavam hum e outro e que para a sustentação e encargos de matrimonio se dotou elle dotado, Antonio de Freitas Pinto e Sousa, pelas suas partes com o vínculo e morgado de Santo Antonio, instituido na villa de Crasto de Ayre de que elle dotado he administrador e mais contratão as legitimas que lhe pertencer e lhe provir por parte e falecimento de sua mãi; e logo pelos primeiros dotadores, Manuel Pinto Teixeira (nota à margem esquerda: "faleceu em 16 de 9bro de 1827)  e sua molher Donna Theresa de Souza me foi dito que effetuasse o dito casamento de que heram contentes e chegando os futuros esposados a receber-se hum com o outro conforme as leis da Santa Igreja pela presente e publica escriptura e nos termos milhores de Direito lhe dotavão e davão e nomiavão à dita sua legitima filha Donna Maria Amalia Benedita das Neves para a sustentação e encargos do matrimonio todos os seus bens que possuem e tem na freguesia de São João de Pinheiro, do concelho de Monção (sic)  tanto moveis como de raiz: com mais duzentos mil reis em dinheiro tudo isto para já desfrutar no caso do dito casamento, digo,  no caso de se effetuar o ditto casamento, isto com a condição de que os mesmos dotados não possam entrar em mais outras partilhas da casa dos dotatodres e nem os mais filhos dos dotadores poderão entrar em partilhas neste dito dotadas e no caso de alguns dos seus filhos queirão contrahir esta minha contade, digo, estas nossas vontades, neste caso antão entrará esta nossa filha nesta casa em partilha dos mais bens livres e quando estes não chegarem para lhe enteirar a quanto ha lhe tirar deste dotte, em tal caso, lhe nomiamos as nossas terças de alma tao somente para lhe enteirar o resto do prejuizo que ha lhe tirar nos mesmos bens nomiados alguns dos nossos filhos, digo, nomiados; e isto com o encargo e obrigaçam deles dotados lheÚLTIMA ÁGINA - REDZ mandarem dizer logo por falecimento de qualquer dos dotadores, dentro do mesmo anno vinte e cinco missas por cada um, rezadas por uma vez.  E mais declarão elles dotadores que se algum delles, algum dia quiserem hirem para o seu poder ou companhia dos dotados os receberão e tratarão e zelarão. E se algum dellles falecerem sem poder lhe cumprirão e farão os seus sufrajos  e pelos dotados foi dito que aceitavão a presente escriptura com todas as condiçõens que na mesma ficam expressas e declaradas e que todos se obrigavão a cumprir inteiramente, a satisfazerem por suas pessoas e bens e terças de alma expecialmente pellos bens aqui dotados, digo,  pelos mesmos bens aqui dotados e que transpassavam este dotte e os bens de hum no outro e os do outro no outro com pacto e condição de que tendo ou não tendo filhos deste matrimonio que delles sempre viver será  uso e frutuario dos bens do primeiro falecido e por morte do ultimo tornarão os de cada hum aos seus respectivos herdeiros; e assim se obrigavão huns e outros, dotados e dotadores a cumprir em tudo a quanto fica extipulado nesta escriptura e que para isso se obrigavão todos e cada hum delles por suas pessoas e bens e terças de alma a fazer-lhe este dotte bom e de por firme e valioso para sempre e lhe cede e dão e transfere todo o direito posse razoens e .dominio util senhorio dos bens aqui dotados. E assim huns e outros o disserão e quiseram outogaram e aceitarão e em testemunho de verdade o assim  mo mandarão escrever neste meu livro de Nottas, a onde eu tabeliam como pessoa publica estipulante e aceitante tudo assim de seu rogo escrevi, estupulei e aceitei em nome das pessoas presentes e por quem tocar absente conforme em Direito posso e devo em razão do meu officio. Resalvo as duas entrelinhas na primeira lauda desta escriptura e no principio donde diz sua filha a outra por baixo da decima regra que diz de seu rogo; e sendo a tudo testemunhas presentes. Antonio Pinto, de Santa Euloia, que assinou a rogo da dotadora por ela o não saber fazer e lhe pedir que por ella assignasse e como seu sinal valece e mais testemunhas Joaquim Pinto, de Passos e Manuel Pinto, solteiro, de Santa Euloia, todos da freguesia de Sozello e todas deste concelho e reconhecidos pelos proprios de mim tabeliam que todas aqui assignarão com os dotadores e dotados, depois desta ser lida por mim Jose Manoel  de Oliveria, tabeliam que a escrevi e assignei = Manoel Pinto Teixeira, Antonio de Freitas Pinto e Sousa = Donna Maria Amalia Benedita das Neves = a rogo Antonio Pinto, Joaquim Pinto, da testemunha Manoel Pinto huma cruz, Jose Manoel de Oliveira = o qual instromento de escriptura de dotte para casamento eu sobredito tabeliam aqui fielmente copiei da propria Notta a que me reporto em meu poder e cartorio em firmeza do que esta com a dita Notta conferi e concertei e assignei em publico e razo de que uso hoje nesta vila e concelho de Sanfins, aos vinte e tres dias do mes de janeiro de mil oitocentos e vinte e sette annos e eu Jose Manoel de Oliveira, proprietario de hum dos officios de tabeliam do Publico Judicial e Nottas neste dito concelho, per El Rei Nosso Senhor que o escrevi e assignei = Jose Manuel de Oliveira".

Com a patente de tenente em 1827, António de Freiras Pinto e Sousa, miguelista assumido,  viria a falecer com a patente de capitão dos Voluntários Realistas de Castro Daire, durante o cerco do Porto em 1832, donde saíram vencedoras as hostes liberais de D. Pedro. Para saberem mais vejam os meus livros  «CASTRO DAIRE, INDÚSTRIA, TÉCNICA E CULTUA»,  editado em 1995 e «CASTRO DAIRE, CAPELA DE SANTO ANTÓNIO», editado em 2014.

 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.