Trilhos Serranos

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sexta, 16 setembro 2016 12:34

DESCOLONIZAÇÃO II

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NA CORDA  BAMBA 

Volvidos que somos à cerimónia a decorrer na sede do Montepio, em Lourenço Marques, no longínquo ano de 1975, vemos e ouvimos que o notário, sempre na mesma toada,  circunspecto e solene, mostrava quanto valia como peça que era indispensável à máquina político-administrativa e judicial num Estado que tinha a sua segurança no pilar da burocracia e os seus agentes, com porta aberta nas Repartições de Finanças, Bairros Fiscais, Esquadras de Polícia,  Tribunais, Cadeias, Julgados de Comarca etc. etc. Num Estado que usava todos os Códigos do Direito Civil, Penal, Administrativo, todos os artigos, parágrafos únicos e vírgulas que lhe davam corpo para defesa e salvaguarda dos seus interesses institucionais, mas, como se verá, omissos ficaram na escritura manuscrita em defesa dos interesses dos cidadãos que a esse Direito se submetiam, cidadãos que, de um dia para o outro, contrariamente à sua vontade, se poderiam ver, como viram, a balouçar na corda bamba das políticas e decisões desse mesmo Estado pela voz dos seus representantes maiores. Foi o caso da DESCOLONIZAÇÃO, processo a que não puderam escapar milhares de cidadãos que, sem serem ouvidos nem achados, foram impelidos a embarcar nela, a aceitá-la, sem apelo nem agravo. Continuemos, pois, a ouvir o notário:

 

Última página - Redz«E pelo segundo outorgante, em nome dos seus constituintes, foi dito, que são donos e possuidores do prédio descrito na respetiva Conservatória desta Comarca, sob o número nove mil e cinco a folhas cinquenta e três verso do livro "B" vinte e cinco, o qual se compõe de um terreno com área se seiscentos e vinte e quatro metros quadrados, onde se encontra construído um edifício de alvenaria e respetivas dependências, situado nesta cidade nas Avenidas Augusto Castilho e Latino Coelho, constituindo a parcela um traço "A" dois traço um traço "A" do talhão número trinta e oito e inscrito na respetiva matriz sob o artigo número trezentos e onze = Que no mesmo prédio se acha construído  um edifício submetido ao regime  de propriedade horizontal, cujo título constitutivo se encontra devidamente registado na respetiva Conservatória = que pela presente escritura vendem à terceira outorgante Maria Mafalda de Brito Matos Lança Carvalho, uma fração  autónoma daquele prédio designada pela letra "FD" no quarto andar = Que o preço desta venda (...) declaram já ter recebido da compradora e de que lhe dão quitação = que aceita esta venda e quitação na forma exarada, pela qual foi paga a sisa devida pelo conhecimento número setecentos e catorze traço trinta e nove mil setecentos oitenta e um, na Repartição de Finanças do Primeiro Bairro Fiscal deste concelho, aos dezoito de Julho do ano findo = Pelo primeiro outorgante, em nome da sua representada, "Caixa Económica do Montepio de Moçambique" foi dito que autoriza o cancelamento das inscrições hipotecária número vinte e três mil oitocentos e noventa e dois, a folhas setenta e seis verso do livro "C" vinte e cinco atrás referida, pois que, quanto às restantes, nelas, continuam subsistindo os registos feitos = Pelos primeiro e  terceiros outorgantes, tendo aquele na sua referida qualidade, mais foi dito que tendo a "Caixa Económica do Montepio de Moçambique", por deliberação da Direção do dia dezoito de Dezembro do ano findo, ata número cinquenta e dois traço setenta e quatro, resolvido conceder aos terceiros outorgantes um empréstimo que eles solicitaram, pela presente escritura vem realizar esse contrato sob as cláusulas dos artigos seguintes que estipulam e reciprocamente aceitam = Os terceiros outorgantes Maria Mafalda de Brito Matos Lança Carvalho e marido Abílio Pereira de Carvalho confessam-se efetivamente devedores da "Caixa Económica do Montepio de Moçambique" da quantia de trezentos e quarenta mil escudos que neste ato dela recebem por empréstimo = Segundo = Este capital vence juros à taxa de onze por cento ao ano, elevável durante a vigência do contrato se outro limite vier a ser legalmente fixado, os quais serão debitados anual e adiantadamente e pagos mensalmente com as prestações do capital = No início do segundo ano e seguintes serão debitados anual e adiantadamente os juros correspondentes a cada ano de contrato, contados sobre o capital em dívida nessa data e pagos mensalmente com as prestações do capital. Além dos juros acima convencionados os devedores pagarão ainda dois e meio por cento sobre o valor do capital imobilizado desde dezoito de Dezembro do ano findo sobre cento e quarenta mil escudos até hoje = Parágrafo Único = Se os devedores deixarem de ser sócios do Montepio de Cada-1- RedzMoçambique ou deverem as respetivas quotas por mais de seis meses, a taxa do juro será elevada para a que na altura vigorar para os não sócios e o pagamento será feito anual e adiantadamente = Terceiro = Os devedores obrigam-se a pagar o capital emprestado no prazo de quinze anos, em cento e oitenta prestações mensais constantes, seguidas e sucessivas de capital e juros de três mil novecentos quarenta e um escudos cada uma, a começar em vinte e oito de Fevereiro do corrente ano, vencendo-se as prestações seguintes no último dia de cada mês. = O pagamento do capital e juros será efetuado nesta cidade, na sede da "Caixa" credora sem necessidade de qualquer aviso ou notificação = Quarto =  No caso de mora por parte dos devedores as prestações em atraso vencerão juros à taxa máxima legal, pelo tempo decorrido desde a data do seu vencimento até à data do pagamento por meses completos de calendário = Quinto = Os devedores poderão em qualquer altura antecipar o pagamento do capital em dívida, no todo ou em parte, sem direito, porém, à restituição ou redução dos juros já pagos ou vencidos. Mas quando se trate do pagamento integral do empréstimo, os juros serão contados por meses completos de calendário até à data desse pagamento = No caso de antecipação parcial os devedores poderão também suspender o pagamento das prestações de amortização nos meses correspondentes às que tiverem pago adiantadamente = Se houver juros em débito a sua liquidação preferirá à amortização do capital.  =. Sexto = todas as despesas judiciais e extrajudiciais que a Casa-2-Redz"Caixa" credora haja de efetuar para reembolso ou garantia do seu crédito, incluindo as desta escritura, registo, certidões, certificados, honorários de advogado e procurador que constituir, serão pagos pelos devedores de harmonia com a conta que a mesma lhes apresentar dentro do limite legal, sendo fixadas aquelas despesas extrajudiciais, tão somente para efeitos de registo em trinta e quatro mil escudos, incluindo vinte e sete mil e duzentos escudos para honorários do advogado = Sétimo = Em garantia deste empréstimo, abrangendo capital, juros e despesas na forma exaradas, os devedores constituem a favor da "Caixa" credora primeira hipoteca sobre a fração autónoma que lhes pertence situada no quarto andar letras "FD" do prédio atrás identificado = a esta fração atribuem o valor quatrocentos e cinquenta mil escudos = Oitavo = Enquanto vigorar este contrato os devedores obrigam-se a segurar por intermédio da "Caixa" credora a fração hipotecada contra o risco de incêndio por valor não inferior a quatrocentos e cinquenta mil escudos em qualquer companhia com sede ou representação legal  neste Estado das indicadas pela "Caixa"  credora e com a respetiva apólice endossada a favor da mesma "Caixa". = Para complemento das despesas de avaliação os devedores pagarão mais a quantia de quatrocentos e vinte escudos = Nono =  Os devedores consignam a favor da "Caixa" credora as rendas da fração atrás descrita pelo que esta se substitui como mandatária aos referidos devedores para fim de, em nome deles,  efetuar os contratos de arrendamento e receber as respetivas rendas, se o prédio estiver arrendado, isto para o caso dos devedores faltarem ao cumprimento deste contrato e se a credora quiser  usar dessa faculdade = Esta cláusula valerá como condição integrante da convenção de empréstimo constante desta escritura, para os efeitos do disposto no número três do artigo duzentos sessenta e cinco do Código Civil. = Décimo =  Enquanto vigorar este contrato os devedores obrigam-se a manter o seguro da fração hipotecada e a pagar os respetivos prémios e bem assim, todas as contribuições e impostos que incidirem sobre o mesmo prédio, entregando à "Caixa"  credora os recibos desses pagamentos quando ela os exigir. = Se o não fizerem poderá a "Caixa"  credora por conta e à custa dos devedores efetuar o seguro e os pagamentos referidos, devendo ser reembolsada das quantias que pagar acrescidas da comissão de dois por cento dentro do prazo de oito dias a constar da data o aviso que lhes fizer para esse fim = Não sendo pagas naquele prazo ficarão aquelas quantias e comissão, vencendo juros à taxa estipulada, considerando-se como despesas extrajudiciais para efeitos do disposto no artigo sexto desta escritura =  Décimo  Primeiro = Se os devedores faltarem ao cumprimento de qualquer das cláusulas deste contrato ou se, durante a sua vigência, a fração hipotecada for vendida, arrestada ou penhorada, poderá a "Caixa" credora dar como vencida esta escritura, executando-a desde logo. = Décimo Segundo = As contas previstas nos artigos sexto e décimo serão a todo o tempo consideradas como parte integrante desta escritura, nos termos do número dois do artigo quinquagésimo do Código do Processo Civil  = Décimo Terceiro = Da hipoteca ora constituída foi já efetuado o registo provisório a Conservatória da Comarca de Lourenço Marques = Décimo Quarto = Para todas as ações emergentes deste contrato fica estipulado o foro da Comarca de Lourenço Marques com renúncia expressa a qualquer outro = Assim o disseram e outorgaram = Esta escritura foi lida aos outorgantes em voz alta e o seu conteúdo explicado na presença simultânea de todos os intervenientes = Esta escritura foi continuada do livro cento e oito "B" a folhas noventa e nove verso, onde teve o seu início».

Edmundo Vaz Perdiz

Maria Mafalda de Brito Matos Lança Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho»

Articulado longo, bem elaborado, pormenorizado, precavendo tudo o que podia acontecer em desfavor da entidade credora (leia-se em defesa dos poderes institucionais) feito por homens de leis, senhores do Direito, acaso alguém viu um item, um artigo, um parágrafo único, uma vírgula somente, que salvaguardasse o interesse dos cidadãos, dos DEVEDORES, caso algo acontecesse contra a sua vontade, algo que se devesse ao mesmo ESTADO que, tão rigorosa e pormenorizadamente forjava as leis que lhe serviam de couraça protetora? Não. Nem uma alusão sequer, uma vírgula que fosse, à obrigação desse mesmo ESTADO ressarcir os cidadãos, os DEVEDORES dos quantitativos gastos, impostos pagos e prejuízos sofridos em resultado do vendaval político-aministrativo, a DESCOLONIZAÇÃO, não prevista, nem sonhada em tão brilhante peça notarial, repleta de itens e solenidades, lançada nos competentes livros, sem esquecer a numeração das folhas, rosto e verso.

A quarenta anos de distância, como sujeito interveniente que fui nessa escritura de empréstimo, de compra e de hipoteca, é sobre a lápide onde está sepultada, que me interrogo sobre a PAZ DE ALMA que exala do espírito, da letra e da forma nela exarada, que me interrogo sobre um documento jurídico-administrativo selado e lavrado numa Repartição do Estado na qual os DEVEDORES, honrados e boa fé, se comprometeram a cumprir o contrato nos termos, condições e circunstâncias em que o assinaram. Os meus filhos e os meus netos perguntar-se-ão um dia qual das partes contratantes  faltou à palavra lavrada.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.