Trilhos Serranos

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quinta, 15 setembro 2016 14:19

DESCOLONIZAÇÃO I

Escrito por 

NA CORDA BAMBA 

Costa oriental de África. Janeiro de 1975. Era um daqueles dias abafadiços e quentes que caíam naturalmente sobre a cidade de Lourenço Marques, cidade que pouca gente sonharia vê-la batizada em breve com nome de Maputo. 

 

Da Baía do Espírito Santo, aquela língua de água que, àquela latitude, separa  a costa leste do continente africano da ilha que lhe fica defronte, - a Catembe - chegava uma aragem carregada de maresia e cheiro a eucaliptos, árvores altaneiras, folha irrequieta  fru..fru...fru....pernadas abertas, ninhos permanentes de cegonhas, umas e outras a povoavam o Zamby, local aprazivelmente acolhedor, ao lado da cidade, onde, à tarde e à noitinha, se refugiavam os habitantes de todas as idades e, ora deambulando a pé, ora recostados nos bancos das suas viaturas, desobstruíam as narinas e purificavam os pulmões com aquele aroma natural espargido prodigamente por essas árvores que originárias da Austrália, a par dos coqueiros, vindos da Indonésia, resolveram um dia conquistar o mundo por via marítima. Os Portugueses fariam o mesmo, em sentido inverso, metidos em caravelas, naus e veleiros de velas enfunadas pelos ventos da pimenta, canela, do ouro, marfim. E ali estavam essas árvores e nós a comprovar a mútua saga sobre as ondas do mar. 

digitalizar0384Com o Isuzu Belet,MLH-34-74,  laranja, estacionado onde, em solteiros, estacionávamos o   Wolksvagen carocha MLA-21-68 na Avenida D. Luís, bem perto do cinema Gil Vicente, eu e a minha mulher dirigimo-nos para os escritórios da Caixa de Previdência do Montepio, a fim de assinamos a escritura de empréstimo, compra e hipoteca da nossa casa nova. De caminho, confiantes no futuro, tão ansiosos quão felizes, ouvimos a sinfonia estridente das cigarras empoleiradas e invisíveis nas copas rosadas das centenas de acácias que davam sombra a quilómetros e quilómetros de passeios, ruas e avenidas naquela cidade axadrezada, cópia fiel da baixa lisboeta pombalina. Às colónias, juntamente com os colonos, chegavam a cultura, os usos, os costumes, as leis e os projetos de construção e planificação urbana. 

Jovens, eu e a minha mulher, íamos embalados naquele sonho próprio da idade, que é ter casa própria, mesmo que para isso se tenha de recorrer a um empréstimo bancário. Tal qual fazem os jovens de hoje. É humano. Até os passarinhos têm os seus ninhos e os animais da selva a sua toca. Sendo ambos sócios daquela Caixa de Previdência, era nela que os juros nos seriam mais favoráveis e, portanto, excluídas foram dos nossos propósitos todas as outras entidades bancárias regidas pelas leis portuguesas.

Com hora marcada, estando presentes os vendedores, compradores e procuradores das partes necessários, cumpridas  as formalidades legais, o notário procedeu à leitura em voz alta da escritura por forma a ser ouvido simultaneamente por todos os intervenientes. E proclamou (em ortografia atualizada):

1ª página - Redz«No dia vinte e oito de janeiro de mil novecentos e setenta e cinco, nesta cidade de Lourenço Marques, na Sede do Montepio de Moçambique, na Avenida Fernão de Magalhães, aonde expressamente rogado vim para lavrar este ato, perante mim, João Augusto Ferreira Pauleta, primeiro ajudante do Terceiro Cartório Notarial desta Comarca, em pleno exercício das funções notariais por se encontrar vago o lugar do notário, compareceram como outorgantes - Primeiro - Carlos Teófilo Costa Garcia, casado, natural de Lisboa, residente nesta cidade, outorgando em representação da Caixa Económica do Montepio de Moçambique, Instituição de Previdência Social, com sede nesta cidade, neste edifício, constituído por procuração com poderes suficientes para esta ato, cuja certidão em fotocópia já se encontra arquivada no cartório a meu cargo a documentar a escritura lavrada a folhas duas do livro número quarenta e quatro e - segundo - Edmundo Vaz Perdiz, casado, natural de Lourenço Marques, residente nesta cidade outorgando como bastante procurador de Alberto Guilherme Ferreira dos Santos, natural do Porto, e sua mulher, Celestina da Costa Amaral Ferreira dos Santos, natural de Várzea de Tavares Mangualde, casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes nesta cidade, constituído por procuração em substabelecimento com poderes suficientes para este ato, outorgada perante Maria de Lourdes Ferreira, ajudante de Cartório a meu cargo e já arquivada no referido Cartório a documentar a escritura lavrada a folhas noventa e nove do livro número sessenta e cinco "C" = Terceiro = Maria Mafalda de Brito Matos Lança Carvalho, natural de Castro Verde e marido, Abílio Pereira de Carvalho, natural de Castro Daire, casados sob o regime de comunhão geral de bens,  residentes nesta cidade, na Avenida Pinheiro Chagas, n. 1579, 5. andar, oito. Verifiquei a identidade dos primeiro e segundo outorgantes pelo meu conhecimento pessoal e a dos terceiros pela exibição dos seus bilhetes de identidade, respetivamente n. 63249 e 155677 emitidos pelo Arquivo de Lourenço Marques, em 5 de Maio de 1970 e em 10 de Agosto  de 1970. E pelo segundo outorgante, em nome dos seus constituintes, foi dito, que são donos e possuidores do prédio descrito na respetiva Conservatória desta Comarca, sob o número nove mil e cinco a folhas cinquenta e três verso do livro "B" vinte e cinco, o qual se compõe de um terreno com área se seiscentos e vinte e quatro metros quadrados, onde se encontra construído um edifício de alvenaria e respetivas dependências, situado nesta cidade nas Avenidas Augusto Castilho e Latino Coelho, constituindo a parcela um traço "A" dois traço um traço "A" do talhão número trinta e oito e inscrito na respetiva matriz sob o artigo número trezentos e onze = Que no mesmo prédio se acha construído  um edifício submetido ao regime  de propriedade horizontal, cujo título constitutivo se encontra devidamente registado na respetiva Conservatória = que pela presente escritura vendem à terceira outorgante Maria Mafalda de Brito Matos Lança Carvalho, uma fração  autónoma daquele prédio designada pela letra "FD" no quarto andar».

Leitura monocórdica, entrelaçada com artigos e parágrafos únicos,  naquela toada formal e sonora que foi transportada para as costas do Índico nos livros de Direito e de Notariado, escritura que tanto se podia escrever e ouvir num qualquer Cartório Notarial de Portugal Continental como em todo e qualquer Cartório das colónias, escritura arquivada nos meus arquivos e na minha memória, resolvi, passadas que foram quatro décadas,  digitalizá-la e comentá-la, que mais não seja, para esclarecimento dos meus filhos e netos e, deste modo, vincar por escrita minha uma das pegadas que os seus pais e avós deixaram naquelas terras longínquas, de gentes e culturas diferentes, senhoras que elas foram das nossas alegrias e dos nossos risos, senhoras que elas foram das nossas angústias e das nossas lágrimas. Lá, onde gerámos e nasceu o nosso primeiro filho - o Nuro, pai da Marta.

Castro Daire. Setembro de 2016. O dia está com o nariz ranhoso próprio do mês e eu, cansado de escrever, olhos a formigar, interrompi a digitalização da escritura manuscrita e fui sentar-me no sofá, na sala. Liguei a TV e "zepincando", com vista a espairecer, parei no canal "Cine Mundo". Iniciava-se o filme "La Banba", fita biográfica de Ritchie Valens. 

Que coincidência! 

Retornado de Moçambique, visando manter uma sanidade mental que me ajudasse a recomeçar a vida no meio da vida, passei anos e anos a remeter para o substrato do esquecimento tudo o que me fizesse lembrar os tempos da "Descolonização" e, de repente, vejo-me a passar para letra redonda a escritura manuscrita da casa de que fui proprietário em Lourenço Marques e, logo de seguida, a ouvir a música que, na década de sessenta, tantas vezes eu e a minha mulher juntos trauteámos dançando: 

Una poca de gracia

 Pa mi y pa ti

Ay arriba Ay arriba

Ay arriba Ay arriba

Por tí seré

Yo no soy Marinero

Soy Capitan

Bamba Bamba

 Para bailar la Bamba

Se necesita

Una poca de gracia

Pa mi y pa ti

Ay arriba

Ay arriba".

Gravei o filme na box MEO.  Vi-o até ao fim e assisti à queda do avião onde viajava aquele jovem cantor. Assisti àquela tragédia que lhe ceifou a vida, quando a canção "La Bamba" já colhia no mundo do canto e da dança os louros merecidos. Não faltaram músicos a dizer que aquele acidente foi "o dia em que a música morreu" ou, noutra versão "o dia em que o rock bateu as botas".

E eu, que sou desse tempo, por mais que me tenha esforçado racionalmente para esquecê-lo, impelido pela emoção, regado o jardim dos sentimentos e afetos, terminado o filme, levantei-me do sofá, dei corda aos sapatos e fui continuar a digitalização da escritura manuscrita. Era imperioso fazê-lo antes de, também eu, atar definitivamente as botas. 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.