Longe da mocidade, rugas no rosto, cabelos brancos, fiel às origens camponesas, fazendo relha da palavra, neste meu virar da leiva, neste pôr a descoberto as entranhas da terra gorda e magra, com a vessada lido nesta minha lavra, ponho à vista o escondido e constato que, por mais que trabalhe, que semeie, colha e malhe, não vejo meio de rasar o celeiro do SER e do TER que dia a dia granjeio e joeiro. Outro é o meu campo, diversas as minhas aivecas, diferente o meu timão, escrevo na esperança de que me leiam, mas para comer o pão, outros o granjeiam.
Quantos anos são passados?
Tirante alguns aborígenes australianos, índios, esquimós, mongóis e os amish americanos, a civilização, deslizando nos seus frios trilhos, há muito cilindrou a tribo, a família, a vida em comum de avós, pais e filhos, do nascimento à morte. É isso, há milénios que cada um tenta a sua sorte e os meus lá estão, na capital, a fazer pela vida, longe da terra natal, tal como fiz eu e tantos mais, na mocidade, que andei por lá, de cidade em cidade, de profissão em profissão, de liceu em liceu, de universidade em universidade, longe dos meus pais, fugindo de cá, do mundo cristão, do campo, da enxada e do arado.
Mas, para meu prémio ou castigo - quem iria sabê-lo? - cá retornei e cá, na árida serra (pois serrano e rústico nunca deixei de sê-lo), fazendo o que sei, cá continuo, com esta idade, a lavrar, a semear, a espalhar sementes, não já no agro, mas nas mentes. Difícil missão é a minha, nesta terra onde moro. Tal é a confusão. Ponho os olhos no chão, nesta terra lavrada e não distingo já o trigo do joio, a semente selecionada da erva daninha. Mas assim penso, assim laboro, assim morro.
(cf. «Memórias Minhas», ed. 2006, pp. 78/79).
Abílio/dezembro/2015