As aldeias de Portugal não estavam no mapa do Pai Natal e o seu trenó não estava apetrechado com GPS que o conduzisse às cozinhas sem chaminés, paredes a luzirem o verniz do fumo negro centenário da lenha verde e molhada. Mas uma coisa era certa. Na noite de Natal, para além da malga de caldo (que agora orgulhosamente integra a DIETA MEDITERRÂNEA como PATRIMÓNIO IMATERIAL), havia sempre um prato grande e redondo cheio de batatas cozidas, bacalhau e couve troncha, em torno do qual a tribo se encarregava de esvaziá-lo. Sim, todos comíamos do mesmo prato. Era Natal e os meus pais precaviam-se para que o petróleo não faltasse na torcida do bico da candeia que alumiava aquela ceia especial. Consoada feita, barriguinha cheia, lume a crepitar na cozinha, rezava-se o terço como sobremesa, sufragando as almas do Purgatório, após o que se desenrolava a história do menino Jesus, coitadinho, a nascer numa manjedoura, rodeado de animais e de pastores. Os três reis magos a levarem ouro, incenso e mirra e o menino, o Salvador do mundo, nas palhinhas deitado, cheio de frio e nós ali quentinhos em redor do lume e de barriga cheia, uns felizardos!
Nessa idade, e no tempo em que a literatura oral era rainha, nutri uma certa simpatia por essa criança, por esse filho de Maria e do Espírito Santo, enteado de José, o carpinteiro. E era com devoção que, seguindo a sacrossanta tradição da aldeia, me punha na bicha para lhe beijar o pezinho e não desmerecer a JUSTIÇA a que atribuíam ao seu nascimento.
Cresci, tornei-me adulto, deixei-me desses beijinhos, conheci melhor a sua "estória". A sua imagem de JUSTICEIRO (a César o que é de César) esvaneceu-se à medida que fui conhecendo aquelas figuras da HISTÓRIA que, muito antes dele, e depois dele, olhando para os mais fracos e desfavorecidos, se afastaram dos interesses dominantes da classe a que pertenciam e, fosse pelas leis, fosse pelas armas, disseram "para pior já basta assim". Ocorrem-me as figuras de alguns legisladores gregos da Antiguidade, dos irmãos Gracos, em Roma, dos Guevaras do nosso tempo e de todos os outros que, podendo ficar-se acomodados no BEM BOM do berço onde nasceram, traíram a sua classe, arriscaram perder amigos e mordomias, acabando com a escravatura por insolvência, fazendo leis para melhor distribuição das terras e da riqueza, lutando para que as os povos deixassem de ser escravizados e colonizados. Quais senhores? Quais senhorios? Quais Mercados? Onde estão os HOMENS desse quilate?
Lembrar-me disso nesta QUADRA NATALÍCIA, quadra para mim, como disse acima, mais depressiva do que festiva, não se deve seguramente ao facto de termos a TROIKA entre portas, do país ter chegado onde chegou, de se vislumbrar o retorno à POBREZA dos meus tempos de menino, mas sim à consciência de que não há SALVADORES DO MUNDO e, comparativamente com outros tempos, são pouco de fiar os revolucionários que, de pantufas, acomodados no BEM BOM, bem escreventes e bem falantes, de classes, só conhecem e defendem os da sua classe.
O Facebook é uma lição!
Nota: este texto foi publicado na minha página do Facebook em 17/12/2013