Trilhos Serranos

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quinta, 17 dezembro 2015 19:33

SALVADORES DO MUNDO

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Há muitos anos, para não dizer desde que me lembra, a QUADRA NATALÍCIA, bem ao contrário da alegria que resulta das cores, das luzes e luzinhas, das prendas e prendinhas que parecem alegrar o mundo inteiro, me deixa algo depressivo e ansioso que acabe a festança. Sinto-me rigorosamente um marginal. Quando me pergunto porquê, não encontro resposta a contento, mas creio atribuir isso à contradição detectada, logo em criança, entre o que se dizia do MENINO JESUS, que nascera para salvar o mundo das injustiças e eu não considerar JUSTO andar, descalço, roto, esfarrapado, remendado e às vezes com fome.

 As aldeias de Portugal não estavam no mapa do Pai Natal e o seu trenó não estava apetrechado com GPS que o conduzisse às cozinhas sem chaminés, paredes a luzirem o verniz do fumo negro centenário da lenha verde e molhada. Mas uma coisa era certa. Na noite de Natal, para além da malga de caldo (que agora orgulhosamente integra a DIETA MEDITERRÂNEA como PATRIMÓNIO IMATERIAL), havia sempre um prato grande e redondo cheio de batatas cozidas, bacalhau e couve troncha, em torno do qual a tribo se encarregava de esvaziá-lo. Sim, todos comíamos do mesmo prato. Era Natal e os meus pais precaviam-se para que o petróleo não faltasse na torcida do bico da candeia que alumiava aquela ceia especial. Consoada feita, barriguinha cheia, lume a crepitar na cozinha, rezava-se o terço como sobremesa, sufragando as almas do Purgatório, após o que se desenrolava a história do menino Jesus, coitadinho, a nascer numa manjedoura, rodeado de animais e de pastores. Os três reis magos a levarem ouro, incenso e mirra e o menino, o Salvador do mundo, nas palhinhas deitado, cheio de frio e nós ali quentinhos em redor do lume e de barriga cheia, uns felizardos!

Nessa idade, e no tempo em que a literatura oral era rainha, nutri uma certa simpatia por essa criança, por esse filho de Maria e do Espírito Santo, enteado de José, o carpinteiro. E era com devoção que, seguindo a sacrossanta tradição da aldeia, me punha na bicha para lhe beijar o pezinho e não desmerecer a JUSTIÇA a que atribuíam ao seu nascimento. 

Cresci, tornei-me adulto, deixei-me desses beijinhos, conheci melhor a sua "estória". A sua imagem de JUSTICEIRO (a César o que é de César) esvaneceu-se à medida que fui conhecendo aquelas figuras da HISTÓRIA que, muito antes dele, e depois dele, olhando para os mais fracos e desfavorecidos, se afastaram dos interesses dominantes da classe a que pertenciam e, fosse pelas leis, fosse pelas armas, disseram "para pior já basta assim". Ocorrem-me as figuras de alguns legisladores gregos da Antiguidade, dos irmãos Gracos, em Roma, dos Guevaras do nosso tempo e de todos os outros que, podendo ficar-se acomodados no BEM BOM do berço onde nasceram, traíram a sua classe, arriscaram perder amigos e mordomias, acabando com a escravatura por insolvência, fazendo leis para melhor distribuição das terras e da riqueza, lutando para que as os povos deixassem de ser escravizados e colonizados. Quais senhores? Quais senhorios? Quais Mercados? Onde estão os HOMENS desse quilate?

Lembrar-me disso nesta QUADRA NATALÍCIA, quadra para mim, como disse acima, mais depressiva do que festiva, não se deve seguramente ao facto de termos a TROIKA entre portas, do país ter chegado onde chegou, de se vislumbrar o retorno à POBREZA dos meus tempos de menino, mas sim à consciência de que não há SALVADORES DO MUNDO e, comparativamente com outros tempos, são pouco de fiar os revolucionários que, de pantufas, acomodados no BEM BOM, bem escreventes e bem falantes, de classes, só conhecem e defendem os da sua classe.

O Facebook é uma lição!

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Nota: este texto foi publicado na minha página do Facebook em 17/12/2013



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.