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sábado, 15 março 2014 13:29

TRIBUNAL DE CASTRO DAIRE (7)

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DA FICÇÃO À REALIDADE

PARA UMA MELHOR JUSTIÇA (7)

 4.3 – DESPACHO SANEADOR (1)

 Depois do tempo suficiente a «marinar, a cozer ou em banho-maria» lá veio o «despacho saneador» proferido pelo Meritíssimo Juiz da Comarca, Dr. Lino Daniel Ramos Anciães, em 05-05-2011.
Ora, como a própria palavra indica, trata-se de «sanear» o que o Meritíssimo Juiz considerou não essencial, isto é, usando nós uma linguagem de camponês, limpou algumas folhas da ramada para tornar mais visíveis as uvas em crescimento e se apurar melhor o vinho. Enfim, uma forma de simplificar a «coisa» e certamente lhe imprimir mais rapidez.Mas deixemos a sua análise para mais tarde e, para melhor se entender a diferença entre a linguagem usada pelos agentes da justiça de outrora e a que usam alguns agentes de agora, como deixei nas grelhas acima, façamos as seguintes considerações e transcrições, dado não haver pressa em terminar a crónica, pois pressa também não houve na resolução da causa em apreço.
Tribunal-2
Os mandatários dos RR. ao formularem a contestação, negam não só a evidência material demonstrada em documentação fotográfica anexa, mas também o fizeram num tipo de linguagem que eu nunca esperei ver, nem escrito, nem falado, na «Casa da Justiça».
Ora recapitule-se: «É falso....é mentira.... É falso» e por aí adiante. Claro que «falar e escrever» assim, pode não chocar todos os tímpanos humanos civilizados (inclusive o de alguns magistrados) mas chocou, por inesperados, os meus, tanto mais que, tendo eu queimado as pestanas na leitura de volumosos e longos processos judiciais históricos, acima aludidos, nunca tais expressões vi manuscritas pelos Juízes e advogados das partes. Trago apenas este exemplo, extraído de um Libelo de Raiz ocorrido em 1831, bem digno de comparar com os dos tempos actuais que, sendo iguais na forma e nos objectivos que visam, que é dirimir os litígios entre as partes, quão distintos e diferentes são na terminologia linguística utilizada!
No que respeita à forma, digamos que me parece não ter havida grande evolução desde então a esta parte: o número dos quesitos foi e é, genericamente, colocado à esquerda ou ao centro da folha, seguido imediatamente do necessário e indispensável argumento. E feita a analogia, em nenhum desses processos, nas réplicas, tréplicas e contestações (ditas «contrariedades») vi as palavras «é falso», «é mentira» que, atribuídas às afirmações da parte contrária, é uma forma indirecta de chamar os AA «falsários» e «mentirosos». Ora se, desde o «Digesto de Justiniano», cabe a quem acusa o «onus probandi», isso não autoriza, nem legitima a parte contrária a apelidar ou a sugerir que sejam «mentirosos» e «falsários» aqueles que fazem prova nos autos, dos factos que consubstanciam a acusação. Olhem o exemplo:
 
 4.4 – LIBELO DE RAIZ DE 1831:
 
 «Replicando
 
P. E confessa o R nos artº. da sua contrariedade, fls 29, a qual confissão, de que anda de posse da leira do Freixieiro, bouça do Vale das Macieiras, bouça do Ventoso, bouça do Vale de Cabanas, leira dos Chãos, com sua casa de corte colmada, Devesa da Cruz, bouça dos Fragais e bouça das Cabanas do prazo de Baltazar. Todas estas propriedades do dote de Francisco Pinto de Assis e Freitas, filho e irmão das AA que lhe fez a mãe e o pai, enquanto vivo e que hoje se acha reclamado pelo horrendo crime de parricídio, que ele cometeu, como se vê na sentença apensa,

P. que os escritos de venda e compra fls 32 e 33, com que o R pretende sustentar o domínio destas propriedades, pretextando de que as comprara ao dito Francisco Pinto de Assis, filho e irmão das AA, foram arranjadas simuladamente depois deste cometer o horrendo crime de matar o Pai, tudo com o sinistro fim de as desviarem do destino que deviam ter, como tudo foi bem público e notório. Tanto assim,

P. que estes escritos da suposta venda e compra destas propriedades foram antedatadas com o mesmo sinistro fim; nelas não figurou a testemunha Antonio Ferreira Falcão e suposto ahi se encontre a assinatura deste Antonio Ferreira, todavia esta assinatura é falsa e fingida, como ele há de  depor, sendo tanto verdade,

P. que quando o R levou os ditos escritos ao Mosteiro da Pendurada para a autorizar, como directo senhorio destas propriedades de que se trata, não levaram a suposta assinatura de Antonio Ferreira Falcão e só tinham a assinatura da outra chamada Testemunha que se vê neles, como tudo foi presenciado por algumas pessoas,
 
P. Que quando o referido Francisco Pinto de Assis tratou com o R a fingida e simulada venda dos mencionados escritos, que foi depois de matar o Pai, estava ele casado com sua mulher Joaquina Rosa, a qual não figurou, como devia, em tal venda, deduzindo-se por isso claramente a simulação da mesma venda,

P. que as propriedades referidas, logo que o dito Francisco Pinto de Assis matou o Pai, ficaram por alguns meses ao embrião e sem tem e sem terem quem as  zelasse, quando até então eram cultivadas e administradas por ele, pelo que fica claro que a venda simulada foi tratada muito depois daquele horrendo facto e que ele e R não chamaram a mulher dele a semelhante negócio, talvez porque isso não lhes fazia conta, quando então  o mesmo Francisco Pinto já era caso,
 
P. que este Francisco Pinto de Assis era amigo especial do R, tanto assim que quando ele matou o Pai, sendo o R  Juiz ordinário neste concelho, este o recolheu por várias vezes em sua casa, como foi público e notório,

P. que o R he homem muito fino e sagaz e não peca por ignorância e sabia perfeitamente que o dito Francisco Pinto de Assis, quando entre si trataram o referido contrato simulado de venda, tinha matado o Pai e que os bens deste estavam sujeitos ao destino que para um tão horrendo facto deviam ter.

Nega-se o mais que ofende, aceitando-se todavia as confissões  úteis.
Em cujos termos devem os RR ser condenados a largar os bens pedidos na forma da conclusão do Libelo, que são todas as propriedades declaradas pelos mesmos RR em sua contrariedade.

F P

P.N. e de não admitir prova da parte dos RR contra a forma da L.

Pinto da Fonseca».
 
O advogado tomou conhecimento dos autos em 5 de Abril de 1832 e entregou a réplica em 2 de Maio do mesmo ano. Então, como hoje, a cantarinha andava de mão em mão e, quando chegou ao procurador dos RR, ele respondeu ao artigo 7º da seguinte forma:
 
«A matéria do artigo 7º da réplica arroga injúria aos RR por isso requeremos que os AA assinem por termo a matéria do mesmo sob pena de se riscar; ao que satisfeito se protesta por nova via para treplicar e para que assim  se ordene e mande, faça concluso.
Tavares».
 
Como se vê, apesar de os textos nos mostrarem muito bem as atitudes de um dos intervenientes e a denúncia da sua amizade com o juiz ordinário (o que sugere, desde logo, parcialidade na questão) apesar do advogado denunciar sobejamente as presumidas mentiras e ou falsidades contidas nos documentos, nomeadamente, as datas e assinaturas, em nenhum dos items vimos as ordinárias afirmações «é mentira» ou «é falso».
Repare-se bem na fidalguia da linguagem. Depois de rebater os argumentos da parte contrária, termina com duas expressões que só por si impõem respeito e autoridade: «nega-se o mais que ofende, aceitando-se todavia as confissões  úteis» e a «não admitir prova da parte dos RR contra a forma da L.».
Tão grande lição em tão poucas palavras. Como eu gostaria de ter conhecido e ser amigo deste senhor «Pinto da Fonseca», sobretudo para o felicitar de «não admitir prova dos RR contra a forma da L.»
 
Mas volvemos à minha CAUSA.


(continua no próximo)

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.