Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas O HOMEM DA VARA BRANCA
sábado, 02 janeiro 2016 13:32

O HOMEM DA VARA BRANCA

Escrito por 


PRIMEIRA PARTE

Ali, naquela praia da costa da Caparica, ele era sempre o primeiro a chegar. Nem um relógio suíço, da mais reconhecida marca, indicava, tão certo, as horas do dia.  Mal chegava, espetava uma vara no chão,  certificava-se da sua firmeza aprumada, punha-lhe no topo uma toalha, atirava os ténis, a roupa e outra toalha para a base dela e ei-lo a correr e a desaparecer no fundo do areal que se estendia por quilómetros de ambos os lados. Por algum tempo o centro do mundo era aquela vara ali espetada que nem estaca de feijoeiro em solo arável e produtivo.


IMG 1397Quando os outros veraneantes costumeiros arribavam à costa, família inteira, naquela rotina domingueira de usufruírem o permanente enlace da Terra, do Mar e dos Homens, naquele casamento pagão de amor e ódio eternos, enredado nas alvas, espumosas e traiçoeiras rendas tricotadas por Poseidon, tridente sempre em punho, diziam uns para ou outros: «já chegou o homem da vara!».

Era verdade. Os seus pertences de praia assim o diziam, mas ele tinha desaparecido dali, como sempre. Andava algures por longe,  afastara-se sem receio de que «mão leve e pé ligeiro», isto é, que algum ladrão,  se apoderasse dos seus haveres, abandonados à curiosidade, ao mar e ao vento.

Praia frequentada pelas  mesmas pessoas, anos seguidos (o ser humano é como as andorinhas, fazendo o ninho num sítio, é nesse sítio que o fazem sempre), aquele homem, aspecto franzino e estatura meã, tornara-se uma figura típica, castiça e intrigante. Quem seria? A soma de interrogações, sobrepostas, ano após ano, fazia dele um gigante. As crianças, sempre atentas e ávidas de  descoberta, não descansaram enquanto  os pais lhes não explicaram de quem era aquela bandeira içada ao vento e despojos abandonados aos pés dela:  são do «homem da vara», não lhe mexam. «Quem está, está, quem vai, vai». E quem é o «homem da vara?» Não sabemos, meninos, só sabemos que ele confia no mundo. E quem no mundo confia deve ser pessoa de confiança. 

«Olhem, olhem, lá vem ele!» E vinha mesmo. Reaparecido lá dos fundos do areal, chegado aos seus domínios, circunspecto, lançava um cumprimento fugidio, educado, aos seus vizinhos, despejava algumas conchas recolhidas no percurso aos pés da vara e, de seguida, braçada larga, mergulhava mar dentro, deixando na cabeça dos adultos e crianças as repetidas  perguntas:  «quem será? Que significa para ele aquela vara?».
De poucas falas, comportamento e gestos urbanos, aquele homem carregava em si o seu quê de rural, de camponês tímido, fora do meio em que foi nado e criado. Aquela vara, sua inseparável companheira de vida, lembrava o cajado do pastor vindo da serra e era, para ele, como que um arrimo de segurança neste mundo estranho, movediço, para onde a vida o atirara, ou que ele próprio buscara, ciente e consciente de que algo mais merecia do que nascer e morrer pespegado aos montes, cajado na mão, a guardar ovelhas e cabras como fizeram os seu pais e avós, desde o tempo dos Mouros.
Metido consigo próprio, alvo de mil interrogações silenciosas, numa das suas ausências a correr ou à procura de conchas, uma revoada de vento levantou a orelha da toalha que no chão cobria um livro que sempre levava e lia depois do banho, enquanto recebia o calor de Aton, a divindade que o faraó egípcio Ekenaton arvorou em deus único, cerca de cem anos antes de Moisés pregar o monoteísmo hebraico. E, nessa ausência, dizia eu, um vizinho do areal, livro a descoberto, espreitou as leituras em que sempre se espraiava o intrigante banhista: era uma «Antologia de Leis» e, visto isso, logo o transmitiu aos amigos que, a partir daí, passaram a apelidá-lo, entre si e  alternadamente, «homem da vara» e «homem das leis». 

Seria? 
Interrompo aqui a narrativa, deixo a costa, fecho os ouvidos ao marulhar das ondas, esqueço o cheiro da maresia, o chilrear da garotada a fazer os seus castelos de areia, e dou um salto até à serra, ou melhor ainda,  até aos meus tempos de infância, levado pelos ventos da memória e, desse modo, trazer à colação a explicação que o meu pai, Salvador de Carvalho, nascido em 1906, (ainda vigoravam as «Ordenações Afonsinas») me deu sobre o relacionamento dos habitantes da minha aldeia com forasteiros e desconhecidos, pois, tanto na serra como na praia, partout, everywhere, em toda a parte,  nunca as pessoas deixam de se interrogar face a coisas insólitas ou pessoas cujo comportamento difere do comum dos mortais. 

SEGUNDA PARTE

E havia mesmo um código secreto, sinais vários, desde o toque do sino, brados,  assobios e acenos  que alertavam os naturais para visitas estranhas,  por norma os homens do fisco, fiscais da caça, agentes da justiça, pessoas que os habitantes, na sua rusticidade e liberdade montesinha, desejavam ver longe das terras que cultivavam e regavam com o suor do seu rosto, terras por onde rompiam os tamancos, já que sapatos não havia.

Dizia-me o meu pai que uma dessas personagens era o «homem da vara branca». E fiquei a saber que ao menor sinal de que se tal figura rondasse por perto,  ou pisasse o chão da aldeia coberta de colmo, os naturais escapuliam-se na primeira esquina e punham-se a espreitar pelas frinchas das janelas, de modo a verem e a não serem vistos. E se algum habitante fosse apanhado se surpresa e lhe perguntassem por «fulano» ou «sicrano», a resposta era mais que certa e sempre a mesma: «ó senhor, não conheço tal pessoa,  não é daqui, certamente», mesmo que se tratasse da pessoa interrogada.
Para lá do comportamento bisonho, claramente solidário e defensivo dos meus antigos conterrâneos, nunca me esqueci do «homem da vara branca» e logo que deixei os matos da serra e penetrei na floresta das letras e da investigação, seguro estava de que, mais cedo ou mais tarde, me cruzaria com tal figura nos trilhos da História. 
E assim foi. Ao ler o manuscrito assinado pelo abade de Ester, em 1758, este clérigo, respondendo à pergunta através da qual se indagava se na paróquia havia  «homens ilustres em virtudes, em armas ou letras», respondeu afoito: «ARMAS? Eles têm os seus arados e todos os mais apetrechos com que granjeiam o pão de cada dia. LETRAS? Como bons cristãos que são, eles assinam de cruz, quando a vara do juiz lhe bate à porta».

Respostas carregadas de ironia e de verdade, registemos, pois, que, no campo das letras, no século XVIII, pleno «Século das Luzes», um «apagão» geral cobria o país e a serra do Montemuro. E os naturais dela, como «bons cristãos que eram», assinavam somente «de cruz»  quando a «vara do juiz» lhes batia à porta.
Respostas carregadas de ironia e de verdade, registemos, pois, que, no campo das letras, no século XVIII, pleno «Século das Luzes» um «apagão» geral cobria o país e a serra do Montemuro. E os naturais dela, como «bons cristãos que eram», assinavam somente «de cruz»  quando a «vara do juiz» lhes batia à porta.

E o juiz era nada menos, nada mais do que  o «homem da vara branca», aquele de que me falava o meu pai, S.C. Ou seja, o «juiz de vara branca», designação que remontava à Roma antiga e distinguia esse agente da Justiça do «juiz da vara vermelha», que, o mais das vezes, desempenhando, embora, as mesmas funções, não tinha formação em leis, nem sabia o que era o abecedário. Mas, seguramente, saberia muito bem o que era justo e injusto.


IMG 1398E, dito isto, familiarizados que estamos com os «homens da vara» (branca ou vermelha, ambas  insígnias da Justiça) é tempo de voltarmos à costa e salvarmos o protagonista da narrativa que acima deixámos suspensa, pendurada, como que a espernear na forca, uma forma antiga de nestes Reinos se fazer justiça. Quem era, afinal, o «homem da vara» que tanto intrigava os veraneantes que frequentavam a mesma praia? Porque raio havia de um homem ter por companheiras  inseparáveis, anos a fio, uma «Antologia de Leis» e uma vara, em torno da qual deixava abandonados os seus pertences, confiante de que ninguém lhe tocaria? Ele era, efetivamente, um Juiz de Direito.  Eu o conheci muitos anos depois através de um amigo comum, antigo colega de liceu.  E vim a saber, pela boca do próprio, que, menino ainda, antes de manejar a caneta, antes de lavrar sentenças salpicadas com apropriadas e eruditas expressões latinas,   manejou habilmente o cajado de pastorinho,   uma espécie de vara que, curso universitário feito, experiência vivida  adquirida nos livros e nos trilhos da magistratura, digestão completa do Código de Hamurábi, do «Digesto» de Justiniano, das Ordenações do Reino e demais códigos em vigor por si lidos, treslidos, interpretados e comentados,  uma espécie de vara, dizia eu, que nunca esqueceu vida fora, até se jubilar na situação de Meritíssimo Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça. Isto, sem nunca olvidar as suas origens humildes, a grandeza e os valores morais e éticos dos seus avoengos, camponeses iletrados, os mesmo que assinavam de «cruz» quando a «vara do juiz» lhes batia à porta. Pois o que se passava na Beira Alta,  passava-se igualmente na Beira Interior, na Beira Baixa, no Minho, no Alentejo, no Algarve, no Reino inteiro.  Largada  a beca, deixados os tribunais, a  sua terra natal, onde não há conchas nem se ouve o marulhar das ondas oceânicas, continua a acolhê-lo  e a chamá-lo pelo nome de batismo, sem a maior parte das pessoas saberem que, longe dali, em terras desconhecidas, intrigados desconhecidos o apelidavam «o homem da vara» ou «o homem das leis», longe de saberem que ele, efetivamente, o era. Seu nome: Salvador da Costa. Naturalidade: Meda de Mouros. Ano de nascimento: 1939. Vejam só! Um cidadão da minha idade. E para a história ficar completa só falta dizer que este SENHOR me foi apresentado pelo Meritíssimo Juiz Desembargador Pedro dos Santos Antunes, o tal que, lá no outro hemisfério, banhado pelo Índico, foi meu colega de estudos.

Abílio/abril/2013

NOTA: este texto foi publicado no meu velho site, em 07-04-2013 e 09-04-2013, em duas partes separadas. Foi transposto hoje mesmo para este site, num só texto com as mesma ilustrações.

 

Ler 1506 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.