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sábado, 02 janeiro 2016 13:56

OS TRÊS MOSQUETEIROS

Escrito por 

 

HISTÓRIA VIVA

Os Três Mosqueteiros desta narrativa nunca usaram capa, nunca manejaram espada, nunca dispararam mosquetes e nunca vestiram camisas com golas e punhos de renda. Não foram pessoas de cortes monárquicas, não pertenceram à nobreza fidalga, não cresceram nem viveram em salões de sobrados cobertos com alcatifas de damasco e de reposteiros aveludados nas amplas janelas viradas para jardins com plantas e árvores exóticas. Nada disso.

De origens humildes, nados e criados em aldeias ou vilórias excluídas dos compêndios da Geografia Humana Nacional, usados no ensino oficial e particular,  juventude passada no meio rural agro-pastoril em contacto com a natureza, conhecedores e utilizadores de todos os apetrechos agrícolas usados pelos seus pais, herdados dos avoengos, um dia resolveram abandonar as berças, deixar a sua Gasconha de nascimento esquecida entre montes, e  partiram em busca de aventura e de fortuna, tentando a sua sorte nos trilhos do mundo. Afoitos, com o pé no estribo da vontade e da esperança, montados na sela do estudo, nunca mais desmontaram nem largaram as rédeas dos Bucéfalos, dos Rocinantes e dos Tornados, até conseguirem osprojetos de vida na direção que tomaram.

TRÊS MOSQUETEIROS
Trabalhadores-estudantes, a desbobinarem o filme das suas vidas em longes terras e mares, atravessaram o Equador e travaram difíceis duelos na conjugação do trabalho e do estudo. Cientes, como Camões, de que «é fraqueza desistir de cousa começada», foram sempre em frente. Desafiaram e venceram, com sucesso, o exército das disciplinas que davam corpo aos programas oficiais dos Liceus. Tudo elaborado em Lisboa e executado em todos os estabelecimentos de ensino espalhados pelo Império, do Minho a Timor. Conteúdos iguais, exames iguais, com professores diferentes, em escolas diferentes, em lugares diferentes. Não havia facilitismos. Quem tinha unhas tocava guitarra. E quem não dominasse os conteúdos programáticos postos à prova, tinha pela frente mais um ano de luta, no mesmo campo e com os mesmos adversários. Sem contemplações.

Após isso, sempre trabalhando e estudando, enfrentaram e venceram todas as cadeiras que, na Universidade, se perfilavam no currículo profissional escolhido. E, vencidas todas elas, com trabalhos e testes institucionalmente exigidos, saíram diplomados e habilitados a fazerem uso das armas forjadas por mãos de ferreiros conhecidos e credenciados nas «tendas» onde foram diligentemente aprendizes. Feito isto, tinham pela frente uma nova batalha profissional, ocorresse ela onde quer que fosse, onde  quer que fossem chamados a exercê-la. 

Dois deles,  nos campos do Direito e da Magistratura Judicial, gastaram o resto das suas vidas por vários Tribunais de Comarca, Tribunais da Relação e Supremo, onde foi necessário aplicar a Justiça e resolver litígios vários entre adultos. O terceiro, no campo da História, andou por algumas escolas  do Alentejo e Beira Alta, a desbravar a mente dos jovens e, nos tempos de «lazer», a retirar a poeira de arquivos mortos para dar vida à história que  neles jazia. Nenhum deles, nos seus percursos,  assaltou os castelos do saber pelas portas traseiras ou portas travessas. Nenhum deles galgou, pela calada da noite, as ameias das muralhas das ciências em que se especializaram, nem, tão pouco,  sob o manto protector do poder e de favores encapuçados. Todos, com honra, glória e proveito social, entraram pelos portões da frente, cientes e seguros dos méritos e créditos conquistados nas lides e liças das adversidades da vida e da escolaridade. A descoberto e peito feito, tal como faziam «Os Três Mosqueteiros».


Mas se eles, em tempos de República, não nasceram, nem se passearam por salões da nobreza fidalga e da corte, se nunca usaram punhos de renda, se não usaram capa e espada, se não fizeram o solene juramento de «um por todos e todos por um», o que é que têm de comum com as personagens romanescas criadas por Alexandre Dumas e que, conjuntamente com Richelieu e Luís III, deixaram as páginas do livro e subiram às telas do cinema para encantaram plateias admiradoras de filmes de acção de «capa e espada
Na verdade, de comum com «Os Três Mosqueteiros», ditos  AthosPorthos e Aramis, têm muito pouco. Só a atitude nobre da amizade e fidelidade entre amigos. Mas, como  no romance com esse título, temos o absurdo matemático  de «três serem quatro»,  já que ao trio se juntou  o D'Artagnan, um jovem abandonado, oriundo da província, com vontade de ascender às elites guardiãs do rei, objetivo que conseguiu com esforço, criatividade e inteligência provadas, não é forçada nem fantástica a similitude que encontro entre este gascão e os três protagonistas desta minha narrativa. Digamos que cada um dos três é um D'Artagnan.  Todos eles oriundos de aldeias ou vilórias perdidas no mapa de Portugal. Todos eles pertencentes a famílias humildes, não abandonados como o gascão, é certo,  mas como ele dotados de espírito de aventura e vontade de subirem a vida a custas próprias,  não receando as batalhas e duelos que travaram para realizarem os seus projetos. Todos  eles orgulhosos da «Gasconha» onde nasceram e da nobre humildade das suas origens. Todos eles cientes, de resto, que foram as origens humildes de D'Artagnan e todas as demais características pessoais que o escritor lhe atribuiu, que deram fama ao romance onde «três são quatro». Quem se lembra do nome dos «três» sem o nome do «quarto?»

Pois é, cada um deles é o «quarto»,  o gascão, e, assim sendo, cada um no seu tempo, com as suas armas e lutas travadas, legítima é a comparação feita, e verosímil é pensar também que, chegados todos à idade dos cabelos brancos, retirados da liça, embainhadas as espadas, olhando o seu passado, bem podem reunir-se numa taverna e, bebericando copos de três, recordem com orgulho caminhos andados, mares navegados, gentes conhecidas, amigos perdidos, amigos achados e, entre dois dedos de conversa e um trago de bom vinho, relembrem os duelos que ganharam, as batalhas que travaram e venceram, graças à iniciativa que tiveram, de verem no acesso ao conhecimento a forma de se realizarem como cidadãos e, com tal estatuto, respeitados e ouvidos, tomarem parte na luta contra as desigualdades, a ignorância e as injustiças.

Mes amis, quelle joie de nous revoir, après longtemps!  Asseyez-vous à côté de moi.
- Certainement, puisque la vie est belle!


- Alors, tavernier,  trois verres de vin, mais nous ne buvons plus que çà.

- Pardonnez-moi, monsieurs, seulement trois?

- Oui, trois seulement!

- Bien, mes amis,  maintenant, ici nous parlons seulement vrai.

 Pois é. Eles bem  podem  falar só verdade, bem podem relembrar e reviver tudo isso entre si, desfrutar sucessos e insucessos.  Mas não envolvam nessas aventuras os  netinhos, pois estes, crianças  do século XXI, treinados a ler curtas mensagens e a escrever com os polegares SMS nos telemóveis, expeditos a usarem o computador, a Internet e todas as demais ferramentas tecnológicas ao dispor, usando os saberes e as armas que têm e manejam com maestria, frutos do seu tempo,  hão de vencer as batalhas e os duelos do presente e do futuro, umas  nos jogos do computador e outras nos jogos da vida. Por ora, sem tempo nem paciência para ouvirem e apreciarem as histórias  das batalhas e vitórias dos avós, as tais que permitiram aos pais e a eles próprios terem o que têm e serem quem são, desde o berçário.

Ademais, para conhecerem a obra de Alexandre Dumas onde «três são quatro» não precisam de gastar os dedos a folhear o livro, a queimar as pestanas na literatura impressa. Basta-lhes  saber o título, os nomes das personagens, escrevê-los no teclado do computador, usar o motor de busca GOOGLE e já está. Outros tempos, outras terras, outros mares, outros céus, outras gentes, outras formas de aprender, de entreter, de registar e de esquecer.

Então, se assim é, quais as razões deste registo? Que mais não seja, por mais desinteressante que pareça, por agora, aos netinhos, ocupados com outras histórias, aventuras e jogos de ficção científica, talvez não seja tanto assim quando chegarem à idade dos cabelos brancos. Nessa altura, chegados aí, seja qual for a tecnologia e os jogos ao seu dispor, talvez tenham tempo e paciência para se interpelarem sobre o seu próprio percurso de vida, pelo percurso de vida dos seus pais e dos seus avós e acabem por não achar descabido tomarem para si um quinhão de D'Artagnan, já que desse protagonista romanesco todo o ser humano tem um pouco. E Alexandre Dumas sabia-o muito bem. Conhecia a humanidade e a bitola de valores de todos os tempos. Conhecia a forma como, na escala social e profissional, cada cidadão podia ascender da base ao topo, desde que se esforçasse e tivesse aptidões para tal.  Não importava as suas origens, fosse nobre ou plebeu, urbano ou rural, citadino ou camponês. 

Abílio/abril/2013.

Nota: este texto foi publicado no meu velho site Trilhos Serranos, em 03-04-2013 e transposto para este hoje mesmo.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.