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terça, 04 outubro 2016 15:29

CASTRO DAIRE - GENTE DA TERRA III

Escrito por 

SÃO BENEDITO

No hino, escrito em quadras (provavelmente nos anos sessenta do século XX) que CARLOS MENDONÇA cantou sobre "CASTRO DAIRE" (este é o título que ele deu à sua composição dividida em 13 CANTOS"), vem em primeiro lugar a "magnífica Igreja Matriz, sumptuosa, bela como uma Catedral", com enfoque no seu interior, assim:

Todo o altar e seu forro alto,

É de belíssima talha dourada:

Devia pelo ESTADO ser "tombada"

Para evitar um vandálico assalto.


Vejam só o alerta que ele deixou sobre a necessidade de  "tombar" (registar, fotografar) o recheio do templo por forma a evitar o roubo da arte sacra. Quanto tempo decorreu até que isso se fizesse? E nessa toada enumera todas as capelas existentes dentro do perímetro da vila. SETE ao todo, a saber:

Santo António, Santa Bárbara, Senhora da Lapa, São Sebastião, Senhora da Soledade, Carrancas, Desterro e São Benedito. Reparem: 


Uma tem a invocação do DESTERRO

Outra, a do "preto", SÃO BENEDITO,

Onde o culto há muito é finito

Não sabendo ninguém, de quem o erro.



castro daire - RedzPois. «Culto há muito finito, sem se saber de quem foi o erro».. E esta sua referência me transporta à alargada crónica, devidamente ilustrada, que em 2005 escrevi no «Notícias de Castro Daire» e no meu site (versão ".com", botão «crónicas») sobre a vida deste Santo. Fui levado a isso por duas razões. A primeira, é que, sendo eu criado num ambiente fervorosamente CRISTÃO, tendo ouvido centenas de  sermões sobre santos e milagres, tendo visto santos e santas em cima dos andores que abrilhantavam as procissões anuais das aldeias e cidades das redondezas, nunca tinha visto um SANTO PRETO até descobrir a imagem de SÃO BENEDITO no solar brasonado, dos Aguilares em Castro Daire e outra metida no nicho de um muro de vedação de uma quinta, na aldeia do CASAL DO ESPORÃO, freguesia de São Pedro de France, limites de Viseu. Segunda, como nenhum historiador está proibido de penetrar na FLORESTA HAGIOLÓGICA, a eleição do PAPA BENTO XVI, na sequência da celeuma pública entre o escolher um «Papa europeu» ou um Papa do Terceiro Mundo (preto que fosse) veio acicatar-me os instintos de caça quando, eleito o Cardeal  Ratzinger, perguntado sobre que nome escolheria ele respondeu  «BENEDICTUM».

E assim, apesar de, desde há muito, me recusar a ser espargido com «auga benta»  sempre fora do alcance do hissope, ritual tão em uso na nossa paróquia, resolvi penetrar no FLOS SANCTORUM e informar-me sobre a vida do  «enjeitado santo preto», aquele cuja existência é ignorada nos sermões e nos andores de procissões tão frequentes neste Portugal «cristão, católico, apostólico e romano». Eu tinha as fotografias da sua imagem, localizada em espaços diferentes, mas da sua história de vida, nem uma linha. Toca, portanto, a investigar.

A Internet dá-nos informação abundante sobre SÃO BENEDITO, mas eu vou socorrer-me  somente do insuspeito FLOS SANCTORUM  e respigar dele os excertos que se seguem:

«Nasceu o preclaríssimo preto e milagrosíssimo S. Benedicto, ou Bento (Benedicto, na língua portuguesa é propriamente Bento), no reino da Sicília, em um lugar chamado Sanfratelo, em que seus pais também nasceram, posto que os avós tinham ido da Etiópia, conquista de Portugal, donde lhe vem esta casta de gente, que ele reparte por muitas terras da Europa. Não foi filho de ilustres pais, mas de pretos mui tostados, e sua mãe (...) foi uma preta escrava  de um cavalheiro chamado João Lanza, e que assim o filho, seguindo a condição da sua mãe, nasceu preto e escravo» que depois recebeu carta de alforria, por ser «inclinado às coisas da virtude e do serviço de Deus».

De Sanfratelo passou para Mancusa e no caminho, chegando-se a ele uma «enferma que sem alguma esperança de remédio humano padecia de terríveis dores de um cancro que lhe comia o peito. E instando com Benedito que sobre ela fizesse o sinal da cruz» ele assim fez e «repentinamente ficou a mulher livre e convalescida daquele tormento».

Era o início de um rosário interminável de milagres. Bastava o seu auxílio e «os cegos voltavam com vista, os surdos  com ouvidos, os aleijados com pernas, os desconsolados e aflitos com alívios em suas mágoas, enfim um menino morto saiu das suas mãos com vida».

E mais adiante, referindo-se aos pouca preocupação que tinha com o corpo cuidando mais da alma:

«(...) e tão pouca estimação fazia da própria pessoa que nas abas do hábito juntava o lixo que tirava dos dormitórios. Em uma ocasião o encontrou deste modo o viçe-rei daquele reino que o ia visitar, e perguntando-lhe que trazia nas abas, lhe mostrou flores, nas quais se havia transformado o lixo que nelas tinha».

 O milagre do conteúdo da abada se transformar em flores, todos nós o conhecemos desde pequeninos. Lembram-se, leitores? Pelos vistos os fazedores de milagres e de santos, nem sempre estão inspirados ou, então, à falta de originalidade e de imaginação, copiam o dito e o feito, pois, nas comunidades analfabetas, tanto faz. Ninguém lê, ninguém coteja, ninguém critica.

casal do esporão - RedzOs seus milagres e a sua vida exemplar foi razão para a conversão de muitos infiéis «principalmente dos índios, cujas ânsias remunerou o Céu, porque depois da sua morte, com os seus retratos e milagres se reduziram e converteram muitos».

Iluminado por Deus «recebeu a sabedoria, sendo oráculo nas teologias, mística e eclesiástica. Todos os que tinham dúvidas em pontos difíceis, a ele recorriam e voltavam satisfeitos com as suas respostas (...) não sabia ler, nem escrever, para que notoriamente se visse qual era a fonte e origem desta erudição eminente (...) entregou ao Senhor o seu cândido espírito em 4 de Abril, terça feira, segunda oitava da páscoa da ressurreição do ano de 1589, tendo sessenta e cinco anos de idade e empregado quarenta no serviço do Senhor, assim no estado de ermitão, como no de frade observante».

 Face à vida que levou e aos milagres que fez,  brevemente «as suas imagens foram colocadas nos altares, não só naquele reino da Sicília, mas por toda a Europa e já no ano de 1610 se tinha estendido até à América».

Até à América e não só. Também até à pequena vila de CASTRO DAIRE, na capela privada do «solar brasonado dos Aguilares» e também na pequena aldeia do CASAL DO ESPORÃO, «Quinta S. Benedito» freguesia de S. Pedro de France, limites de Viseu. 

E deixo a pergunta: com tão brilhante curriculum hagiológico o que terá São BENEDITO para não ser lembrado em sermões, nem andar a pavonear-se por aí em cima dos andores processionais, enfeitados de cetins, bolinhas coloridas,  flores e coisas mais? O que levou Carlos Mendonça a constatar o seu «culto de há muito é finito, não sabendo ninguém, de quem é o erro?»
 

Nota: Cf «trilhos serranos.com» botão «crónicas», 21-05-2005

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.