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quarta, 16 agosto 2023 15:41

O MONTEMURO «A SERRA E AS GENTES»

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LETRAS VIVAS

Se algum dia, nos meses de maio e junho, de qualquer ano, atravessou a serra do Montemuro e arredores e lhe escapou da vista a sua vestimenta natural de cores várias próximas e distantes. Se fez isso e não sentiu os inebriantes odores lilás, amarelo, verde, branco e demais exalados por tudo o que é ornamento arbustivo que alinda montes e outeiros - deixou escapar, seguramente,  a magia da montanha parida pelas giestas brancas e amarelas, sargaços cinzentos, urgueiras lilás e brancas, a queiró lilás, o tojo amarelo/verde,  tudo isto, nascido a esmo, jardim natural, cosido ao chão, obra de imaginário tecelão que, seguramente, inspirou as rendas e os brocados exuberantes, prateados e dourados,  das dalmáticas clericais e das jaquetas de  toureiros nas suas relações lúdicas com animais e gentes. 

Mas se lhe escapou tal beleza igualmente lhe escapou o valioso préstimo que todos estes arbustos têm na vida do camponês. Para além de alimento para os gados, eles servem para lenhas, estrumes e das raízes da urgueira gandarinha (“Erica Australis” na classificação de Lineu) se fazia carvão, a  principal fonte de energia utilizada nas forjas de ferreiros (tantas e tantos) e lareiras de mosteiros e solares senhoriais.

urgueiras-2urgueiras-1Nado e criado numa aldeia serrana, CUJÓ  de seu nome, concelho de Castro Daire, cedo aprendi a absorver, pelos sentidos e pela reflexão, descalço, pé assente no chão, toda essa beleza, noite e dia. E nessa academia da vida, instituição onde se entrava sem exame de admissão, a par da pastorícia e da agricultura se incluía também a cadeira da arte de fazer carvão, uma forma de “cunhar” dinheiro, onde dinheiro não havia. 

Os ferreiros, com tenda acesa em tempos de invernia, agarrados à tenaz, ao malho, martelo e bigorna e o fole a assoprar a pedir alimento de combustão, pagavam, na hora, a quem lhe levasse carvão de torga. Pó e poeira tudo o que desse peso e barriga aos sacos de serapilheira. 

E eu me lembro bem o que fiz e o que levei. 

ENXADAenchadãoFeita a permuta, foi a vez primeira que, como quem ainda escuta, ouvi tilintar na algibeira moeda sonante, dinheiro metálico meu, “cunhado”  por mim, assim, ofegante, a suar, a queimar raízes de urgueira. E que objetivos bailavam, então,  na minha cabeça, ó gente? Tão somente pendurar algumas campainhas no pescoço das vacas do meu pai, adquirir um relógio de pulso e  comprar uma caneta de tinta permanente. Pormenores? Quanto tempo já lá vai, senhores!

Relógio

Não era tarefa fácil. Ela exigia experiência, aprendizagem e força muscular para manejar as ferramentas necessárias. Escolhida que fosse a tapada, eleito o urgueiral com “tocos” bastantes, a tarefa exigia, desde logo, uma enxada, um enxadão e uma alavanca de ferro. E apraz-me dizer que, desde rapaz, vi em todas as ferramentas de trabalho, desde o simples e frágil canivete ao tosco e vigoroso traçador do madeireiro, a extensão material da inteligência humana, congeminadas para facilitarem as nossas tarefas quotidianas.

Acção primeira: o derrube da rama da urgueira. Rama cortada era lenha seca que tinha por destino a caminho da lareira. No solo ficavam as raízes, as torgas, os “tocos”, tudo pronto a arrancar com a ajuda do enxadão e da alavanca de pedreiro. Cada raiz escavada em torno, cavadela após cavadela, puxa-que-puxa, suor a pingar no chão, era ver subir o montão delas, eriçadas, na terra cavada, prontas a entrarem na cova aberta previamente ou herdada  de anterior serventia. Dois metros de diâmetro e um de fundo. Para quem não saiba e agora veja, ó senhores, como num filme a cores, a cova, da boca ao fundo,  imitava um hemisfério do mapa-mundo, meia calote do globo terreste em miniatura, uma tina, uma espécie de cúpula invertida de igreja bizantina. E não faltavam covas por essa serra fora, quantas? Lá mais para diante hei-de falar das antas, das mamoas, dos túmulos dos nossos antepassados distantes, povoadores da serra e da terra que herdámos. Que tais construções existiam, eu nem sequer sabia, por isso, mais correta analogia eram os montículos de terra levantados nos lameiros e terra de sementeira, labor subterrâneio e cego da toupeira. 

moca-torgaTORGA-1Cova aberta, “tocos” prontos a entrarem nela, colocavam-se no fundo alguns chamiços, tipo acendalha. Empilhava-se a primeira camada. Bem empilhada, pegado o fogo, não tardava a termos ali um braseiro, uma fornalha. Torgas tornadas brasas, sobre elas se empilhava a segunda camada. A primeira pegava fogo à segunda e, no momento certo, lousas e terra de cerco, em redondo, abafavam o braseiro incandescente. Sem oxigénio,  lentamente, o braseiro da primeira camada carbonizava e virava ouro negro. E assim até ao fim, com arte e jeito. Um milagre de paciência e de “saber de experiência feito”. 

E, carvoeiro, profissional ou aprendiz que se prezasse, rezasse ou não rezasse para ser bem-sucedido, sempre perto, ó que arte aquela de abafar em tempo certo a camada incansdescente; ó que ciência, fazer de raízes carbonizadas energia em potência. Que paciência, que saber manter aceso o fogo ascendente, camada após camada. Que cálculo, que tino, interromper a combustão no momento adequado, sem lição de livro aberto ou fechado. Ciência  que cada carvoeiro aprendia na cova e para a cova levava. Nada escrito. Só visto e dito. Por isso, a pretexto, escrevo este texto. A partir de agora fica escrito.

presuntoTORGA-2Por vezes (vem a propósito lembrar)  que para melhor acomodação e empilhamento das torgas, tipo “soenga” de oleiro, rachavam-se os tocos  ao meio, com a ajuda de um machado. E abertas assim as duas metades - ó que emoção me traz este assunto, - faziam lembrar nacos de presunto vermelho, um regalo,  mais de comê-lo do que queimá-lo. Irónica analogia esta! É que sendo o presunto e toda a carne fumada um produto raro e caro na aldeia, carne de festa, era isso que via e me apetecia. Mas que ideia, que sensação? E lá vinha o adágio, “foi por ser poupadinho, que a carne do meu porquinho me chegou ao Entrudinho”. Ali, naquele chão, que sarilho, nem febra, nem sucolento toucinho. Só pão, côdea rija de broa de milho.

Enfim. Fogueira acesa, é deste modo, é assim o começo do inferno para as raízes mortas da urgueira gandarinha, (Erica australis, segundo L.), planta que, em vida, toda florida, pintou a serra de violeta. 

Mas ela, a urgueira gandarinha, se tinha por destino e  sorte competir na jardinagem e floração da serra com a sua irmã “reagueda»  de flor branca, não a tinha como parceira na morte. Só ela dava torga para carvão, só ela podia tornar-se energia em potência, que, assim preparada, carbonizada e ensacada, viajava quilómetros até, em tempo posterior, num qualquer dia, ser ativada e libertar o calor e a força que em si escondia.

EsterDigo tudo isto por obrigação de ofício. A minha experiência  na arte de fazer carvão já ficou nas páginas do livro “ESTER, PEGADAS NO TEMPO”, quando me veio à mão o libelo judicial entre as povoações de Ester e Pinheiro, disputando, em tribunal, a posse “imemorial” de baldios montemuranos propícios a pastos, lenhas e carvão.

A arte de carvoaria, exige, pois,  saber e experiência acumulados. São horas a fio na tarefa de empilha, põe, compõe, ajeita, queima e tira. São séculos de vida e de história, transmitida de geração em geração. E cada queimada, cada cova de carvão, cada fornada, só terminava quando a última lousa tapava a chaminé, digamos, quando se rematava a cúpula daquele templo com o inferno dentro. A tampa abafadeira.

Feito isso, cúpula térrea levantada do chão, cabe à enxada a tarefa de atirar terra  para os sítios onde línguas dançantes de fumo, levadas pelo rumo da aragem, davam sinal de quererem libertar-se do ovo onde estavam prisioneiras. Se, por descuido ou pressa, ficasse um só respiro, o resultado não era coisa linda ver. Eram  dias de trabalho e suor vertidos em cinza. Pó, terra, cinza, nada, depois de tanto suor e trabalho.

Por isso, o carvoeiro profissional ou aprendiz, antes de abandonar o local e a obra, mirava-a, remirava-a e, fazendo tempo, dava uma olhadela pela paisagem adiante. E via por todo o lado, por toda a serra, montes e outeriros,  colunas de fumarolas, um sem número de montículos semelhantes, a lembrarem as mamoas pré-históricas, túmulos/templos deixadas pelos nossos antepassados distantes, construções, como eu disse acima, nem sequer conhecia.

Pouco tempo. Alguns dias após desfazia-se  da tenda. Terra e lousas retiradas com cuidado, saco aberto ao lado, pá de pedreiro perto, o ouro negro assim garimpado no filão da serra do Montemuro e arredores, era dinheiro seguro, estava pronto para servir nas forjas dos ferreiros locais, ou aquecimento de casas senhoriais das cidades de Lamego e do Porto.

PEGADAS0000E antes que seja tarde, antes que eu esteja morto, de cabeça levantada, resumo, o que não deixei no livro “PEGADAS MINHAS”:

urgueiraNa juventude, com enxada e enxadão em punho, um desejo encasquetado na cabeça, abri uma cova no chão, derrubei urgueiras gandarinhas, arranquei as torgas, fiz carvão e, de calos na mão, com o dinheiro dele, comprei uma caneta de tinta permanente. E, aos  84 anos de idade, tenho na pituitária o cheiro do carvão arrancado na tapada dos meus pais, sita no Outeiro do Pisão, ao lado do Rio Mau. E não esqueci, também, como dou aqui prova escrita, toda essa sorte, toda essa dita, todos os trabalhos que me fizeram suar, mas também me deram o prazer  de ouvir tilintar na minha algibeira o primeiro dinheiro “cunhado” em Cujó, na tenda dos Ramalhos, com o qual comprei uma caneta, primeiro passo de longa e distante meta.

canela

Sou professor aposentado. Assumido lenhador na florestas das letras, com assento no podium “NOTABLE PEOPLE” disponível no GOOGLE ( https://tjukanovt.github.io/notable-people) para respeito e consideração dos estudiosos e despeito dos imbecis, sem agulha nem carris, enrroscados nos seus covis,  eis-me de podão em punho metido mato dentro a usar as LETRAS para falar de carvão, da serra do Montemuro e suas gentes. Não sei se é uma lição. Se é, pergunto-me  a quem presta ela no tempo em que a mocidade caleja os polegares das mãos a rolar o tapete solto das suas ferramentas digitais de bolso? Mas que finta! Eu, na minha mocidade, preocupado em arranjar uma caneta. E eles, com a mesma idade,  a escrevem sem caneta, sem papel, nem tinta. Uns felizardos. Viva a ciência. Viva o progresso. Nós e a natureza. Nós e as coisas. Nós e os tempos! Nós e as pessoas. Nós e a HISTÓRIA.

vide link https://www.youtube.com/watch?v=CcZHeReTG9Y

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.