A lareira tradicional da casa serrana, geralmente sem chaminé, estava encostada a um dos lados do pequeno espaço coberto de colmo, nomeadamente a dos meus pais, em Cujó. Ao lume dela se aqueciam as pessoas, cães e gatos. Era uma espécie de alguidar quadrado, com piso de pedra, uma laje arrancada ao fraguedo dos arredores e assente em traves de carvalho colocadas a um nível inferior ao das outras traves onde assentava o sobrado, por forma a que este servisse de banco a toda a família.
Nestes tempos de auto-estradas, vias rápidas e bólides de alta cilindrada, preferencialmente de marca alemã que atravessam o país em poucas horas (ainda anda no ar um certo aroma a troikas e baldroikas, a mercados, a mercancias e merklancias); nestes tempos de esqueléticas mensagens de escrita e leitura rápidas, sem necessidade de papel, nem caneta, nem tinta; nestes tempos de «sms» nas quais as vogais «lastiram p’ra forates» e o K, nesta novel república digital voltou a ser rei, entronizado à revelia de qualquer Acordo Ortográfico (para gosto ou desgosto dos que, respectivamente, vêem a Língua Portuguesa viva ou fossilizada) estava eu em sossego, estendido num sofá, em minha casa, em Fareja, aldeia sita entre Viseu e Lamego, a reler «O Homem da Nave» de Aquilino Ribeiro e a degustar a descrição que ele faz da chegada a Lisboa da diligência onde viajaram o fidalgo de Tabosa, o ostrogodo Almeida de Vasconcelos, e o seu escriba, Padre José Aniceto, descrição que partilho com os meus leitores, para melhor juízo e paladar. Assim:
No momento em que o Presidente da República e mais governação portuguesa se desloca à China, com os propósitos expressos de intercâmbios de interesses comuns, achei por bem transcrever para aqui um texto que, em 2003, publiquei no meu velho site e no "Notícias de Castro Daire". Assim:
"OS CHINESES EM CASTRO DAIRE
"Quatrocentos anos após os português Leonel de Sousa ter firmado com os chineses o primeiro tratado comercial visando a fixação de gente lusa na península do Kwangtung, a troco de 10% dos direitos comerciais, eis que a História dá a volta. Neste princípio do século XXI, os chineses descobrem a Europa, Portugal inteiro e, em fins de Julho de 2003, chegam também a Portugal.Estabelecidos na vila, chegaram 450 depois dos portugueses terem feito pela vida lá pelas terras do Oriente, incluindo as costas da china.
Haverá, seguramente, outras versões, mas esta é aquele de que me lembro desde menino, contada em Cujó, freguesia de Castro Daire. Nesta lengalenga, para lá de um bom exercício de memória que era fixar e unir sequencialmente os elementos que lhe dão corpo, desde o início com a FORMIGA, esse ser minúsculo e laborioso, até chegar a DEUS, todo poderoso, criando o homem (donde ressalta claramente um objectivo catequético cristão) destaco dois termos do léxico local, de uso frequente: a palavra "lume" em vez de "fogo" e a palavra "aqueibar" o vento, referido à parede, no sentido de ela o "reter", termo usado com o mesmo sentido nas expressões: "aqueibar o gado", "aqueibar as vacas", que o mesmo era dizer "retê-las", "pará-las", "sustê-las", não as deixar "ir adiante", não as deixar "prosseguir".
Namoravam havia alguns anos, tal como todos os outros jovens da sua idade, nados e criados na serra. Quantos namoros desses nasciam na escola primária com a troca de papelinhos ou com as brincadeiras fortuitas que tinham lugar nos montes da redondeza, quando, crianças ainda, por ali guardavam os gados? Em ambiente serrano e livre, possuidores de uma imaginação tão libertina e colorida quão era a diversidade das flores e das borboletas ziguezagueando de planta em planta, a atracção pelo sexo oposto era, para os jovens serranos de qualquer idade, a coisa mais natural deste mundo.Os pais não lhes falavam nisso, nem precisavam de falar. A mãe natureza era a sua mestra, por excelência. Bastava olhar em redor. Os animais que conduziam aos montes e traziam de retorno às lojas, dando vazão ao seu instinto natural da reprodução, iniciavam-nos na sua sexualidade. Diziam-lhes como se fazia. Eles bem viam o carneiro e o bode a cortejarem as fêmeas, a cheirarem-lhes o sexo, a levantarem as ventas ao vento, a arrebitarem a beiça, a espirrarem, a baterem-lhes com as patas dianteiras na barriga, «mrum...mrum...mrum...» e, não tardava nada, apoiados nas patas traseiras, aí vai disto. E era uma vez uma cabrinha virgem que berrava de dor ou de prazer e/ou uma cabra feita que já tinha posto na feira um fato de filhas e filhos e sabia bem do que se tratava.